A presença de aviões da força aérea britânica em território brasileiro, como o Airbus A400M Atlas que pousou no aeroporto Salgado Filho na quinta-feira (20), provocou em 1983 uma crise política entre Brasil e Argentina, que chegou ao futebol.
Naquele ano, o fotógrafo de ZH Fernando Gomes flagrou o pouso de aeronaves da Royal Air Force na Base Aérea de Canoas a caminho das Malvinas (Falklands, para os britânicos). As imagens, que ganharam repercussão internacional, puseram fim a longos meses de desmentidos de parte das autoridades brasileiras, que reivindicavam neutralidade na Guerra das Malvinas, mas, nos bastidores, permitiam o sobrevoo e o pouso dos aviões britânicos como escala técnica para o arquipélago – o que gerou protestos por parte do governo argentino, então governado por uma junta militar, e quase levou as duas nações a romperem relações diplomáticas.
A crise política contaminou a Libertadores e transformou em guerra uma partida entre Grêmio e Estudiantes, em La Plata, em 8 de julho de 1983. Os argentinos queriam usar o futebol para se vingar do pouso do avião em Canoas, dias antes da partida. Transforaram a vida da delegação gaúcha em um inferno.
– Foi a única vez na vida que tive medo. Não medo de jogar, que nunca me aconteceu: medo de morrer mesmo – chegou a confessar o ex-zagueiro uruguaio Hugo De León.
A delegação gremista recebeu telefonemas com ameaças de morte no hotel, antes do início da partida, um jogador do Estudiantes levou cartão amarelo por chutar o gremista Caio, o goleiro Mazaropi foi agredido por um fotógrafo que invadiu o campo, torcedores atiraram paus e pedras no gramado e houve quatro expulsões nas fileiras do Estudiantes. Depois do jogo, os ônibus com torcedores gremistas foram apedrejados.
Dentro de campo, o Grêmio ganhava por 3 a 1, mas cedeu o empate. Muitos cronistas da época disseram que vencer significaria morrer. Passado o susto, meses depois, o Tricolor levou a taça.
Veja reportagens de ZH na época da crise e sobre a partida do Grêmio em La Plata
Passado o auge do conflito nas Malvinas, o Brasil continuou a receber voos militares britânicos, sempre sob protestos argentinos. Em 2017, um documento sigiloso da Casa Rosada informou que seis aeronaves militares do Reino Unido usaram os aeroportos Salgado Filho, em Porto Alegre, e pistas no Rio de Janeiro e São Paulo, como escala para as Malvinas, em 2016. Muitos parlamentares afirmam que o Brasil estaria descumprindo compromissos com a Argentina e com o Mercosul.
Em relação ao pouso de quinta-feira (20), no Salgado Filho, o Itamaraty informou à coluna que o Brasil só permite que aeronaves militares ou civis a serviço de Estado estrangeiro cruzem o espaço aéreo brasileiro ou aterrissem em seu território com a devida autorização do governo brasileiro. Também acrescentou que tem plena ciência da sensibilidade da questão das Ilhas Malvinas para o governo argentino: "O Governo brasileiro apoia historicamente, desde 1833, o pleito argentino na disputa de soberania com o Reino Unido sobre as Ilhas Malvinas". Afirmou ainda que, no caso do avião que pousou em Porto Alegre, "trata-se de voo com o objetivo de troca de aeronave de busca e salvamento, que é um dos casos previstos nos critérios de autorização adotados pelo governo brasileiro".
O fato de aviões militares britânicos voltarem a usar aeroportos brasileiros como escala a caminho das Malvinas vem à tona no momento em que as relações entre Brasil e Argentina voltaram a ficar delicadas. O presidente Jair Bolsonaro e o então candidato e hoje presidente argentino Alberto Fernández trocaram acusações durante a campanha eleitoral no país vizinho, no ano passado. O retorno dos peronistas ao poder levou Bolsonaro a afirmar que "a esquerdalha" estava prestes a voltar à Casa Rosada. Fernández visitou o ex-presidente Lula na prisão, em Curitiba. Bolsonaro não compareceu à posse do colega, e ainda não houve um encontro entre os dois — uma reunião estava sendo acertada para a posse do uruguaio Luis Lacalle Pou, em 1 março, mas foi adiada, segundo o argentino por uma questão de data.
Em novembro do ano passado, a Latam inaugurou, sem alarde, uma nova rota entre São Paulo e as Malvinas. Dias antes da inauguração da rota, houve intensa troca de correspondências entre as chancelarias. Informalmente, o governo de Mauricio Macri pediu ao Brasil que não fosse dado caráter político ao evento — ou seja, que autoridades brasileiras não participassem da inauguração ou mesmo viajassem no voo inaugural. Há preocupação de que a abertura da rota fosse vista como uma chancela do governo brasileiro à soberania britânica das ilhas.