É um erro, ou no mínimo reducionismo, dizer que o peronismo é de esquerda. Não o é, necessariamente. O que conhecemos como peronismo na Argentina abarca um arco ideológico que vai de movimentos de extrema-direita dos anos 1940, passando pela direita liberal de Carlos Menem (década de 1990), e chegando à esquerda mais radical, representada hoje pelo movimento dos jovens do La Cámpora. No meio, estão diferentes tonalidades políticas e um sincretismo ideológico característico da América Latina se fazem presentes.
O movimento justicialista, nome oficial do peronismo, foi criado pelo então tenente-coronel Juan Domingo Perón, a partir de sua chegada ao poder, em 1946, e guarda semelhanças com o trabalhismo de Getúlio Vargas no Brasil: apoio do movimento sindical, política ativa de proteção aos trabalhadores e forte intervenção estatal na economia. Perón é uma espécie de pai dos pobres na Argentina: criou a base da legislação trabalhista, com férias remuneradas e 13º salário, medidas parecidas com a CLT brasileira.
É simplista, no entanto, afirmar que seria um movimento de esquerda dado o caráter camaleônico, que, desde sua fundação, é congrega sob seu guarda-chuva integrantes da elite econômica, sindicalistas, intelectuais e líderes oligarcas locais, uma espécie de coronelismo à argentina. A coalizão que levou Perón ao poder em 1946, por exemplo, reunia ainda uma parcela dos militares e da Igreja Católica.
Desde a morte de Perón, em 1974, quase todos os políticos bebem de seu espectro e tentam tirar uma casquinha de sua popularidade (e populismo): de Menem, que ficou 10 anos na Casa Rosada, abriu a Argentina ao capital estrangeiro e privatizou empresas, seguindo a receita do Consenso de Washington, a Néstor Kirchner e Cristina Kirchner, que formaram seu próprio movimento dentro do peronismo, o chamado kirchnerismo. O casal K adotou uma agenda de esquerda, com nacionalização de empresas e protecionismo.
O próprio presidente Mauricio Macri, que se propõe a ser um governo de centro-direita, conta com ex-peronistas em sua equipe de governo e de campanha — a começar por seu candidato à vice-presidência na eleição de domingo, o senador Miguel Pichetto, presidente do Partido Justicialista no Senado. Aliás, o próprio Macri tentou surfar na simbologia de Perón ao inaugurar, enquanto era prefeito de Buenos Aires, uma estátua ao general perto da Casa Rosada.
O peronismo vai além da política: é partido, movimento, cultura e quase uma religião — Evita, ou Maria Eva Duarte, sua mulher, é considerada santa por muitos fiéis. Foi da primeira-dama o esforço por uma lei do sufrágio feminino. Até então, mulheres não podiam votar. Os movimentos de Cristina, que incendiava multidões em estádios — embora na campanha tenha adotado uma postura mais discreta —, lembram, de propósito os discursos de Evita.
— Perón! Perón! — gritavam os militantes na festa da vitória de Alberto Fernández e Cristina, no domingo.
Ouvir esse grito em pleno século 21 é como, se no Brasil, alguém estivesse gritando "Vargas! Vargas!", mesmo que hoje, à luz da história, saibamos que ambos tiveram seus períodos ditatoriais.
O próprio Fernández é uma figura que não se pode classificar, necessariamente, como sendo de esquerda e muito menos um peronista de raiz. Ele está na política há décadas, atuando sempre nos bastidores: participou do primeiro governo pós-ditadura, de Raúl Alfonsín (da União Cívica Radical, centro-direita), de Menem (peronista), de todo o mandato de Néstor Kirchner, como chefe de Gabinete, e no primeiro ano de Cristina (kirchneristas).
As diferentes vertentes do peronismo já brigaram entre si em várias ocasiões. Na eleição de 2003, Menem enfrentou Néstor em uma disputa fratricida. Perdeu, mas o chamado menemismo ainda é forte em algumas regiões da Argentina. Antes, em 1973, o episódio conhecido como Massacre de Ezeiza opôs, nos arredores do aeroporto internacional, organizações armadas peronistas, no dia do retorno de Perón ao país, após 18 anos de exílio.
O próprio general, enquanto estava na Espanha, brincou com essa miscelânea ideológica que ele próprio criou, dizendo que, na Argentina, uns 30% da população era composta por radicais, outros 30% por conservadores e ainda muitos socialistas. E os peronistas?, alguém questionou. "Bem, peronistas somos todos", respondeu Perón, antevendo o poder simbólico que seu nome ainda teria décadas depois de sua morte.