Em meio às manifestações mais violentas desde a era Augusto Pinochet no Chile, a esquerda conseguiu uma vitória na quinta-feira (24), aprovando a redução da jornada de trabalho de 45 para 40 horas semanais. Foi uma derrota para o governo de Sebastián Piñera, que era contra a medida. O presidente é pressionado pelas ruas, desde o decreto que aumentou a tarifa do metrô — ele recuou esta semana, mas as manifestações não pararam.
A iniciativa foi proposta pelo Partido Comunista. Agora, será examinada pela Comissão de Trabalho da Câmara. Segundo a legenda, a aprovação irá ajudar o país a "avançar em uma agenda que ajude a superar a atual crise".
Em entrevista à coluna, o deputado Hugo Gutiérrez, um dos líderes do PC chileno, que conta com oito parlamentares na Câmara, explicou, por telefone, como todas as legendas do país foram surpreendidas pelas manifestações nas ruas.
Os protestos são uma oportunidade para a esquerda no Chile?
Há uma crise política aguda no Chile, que eventualmente desembocaria no que o povo está exigindo nas ruas: a renúncia de Piñera e que se inicie um processo constituinte, que outorgue ao país uma nova Constituição. Essa é a demanda que está instalada e que as pessoas veem como solução para todos os problemas. Essa é a resposta que esse governo e o parlamento devem dar, abrir possibilidade de um novo marco normativo no Chile. Creio que é impossível fazer a grande mudança que o país requer (mantendo o atual governo e o parlamento). As pessoas já não acreditam em praticamente ninguém porque ninguém lhes deu uma resposta. Nós, no parlamento, tampouco podemos dar porque a ditadura deixou uma institucionalidade muito pesada e que demora muito para que possamos remover.
As manifestações são organizadas pela esquerda?
São manifestações que a todos nos surpreende. Toda a política chilena se viu surpreendida, e a direita espantada, pelo número de pessoas que está nas ruas, exigindo mudanças profundas no país. Nós também fomos surpreendidos. Mas, obviamente, acolhemos toda essa mobilização com entusiasmo e alegria, porque acreditamos que está na direção correta: dar uma saída a uma crise política que se expressou em 1973 e que teve como solução um golpe de Estado. Em seguida, se experimentou uma solução neoliberal que não deu uma resposta até hoje, que não é a que o povo quer e que não teve (a população) oportunidade de mudá-la. O que está ocorrendo hoje tem sua origem em um projeto político encabeçado por Salvador Allende (presidente deposto por Pinochet) há 50 anos, que prometia melhor qualidade de vida para os chilenos e chilenas e que foi suspenso por um golpe de Estado de direita, propiciado pelos Estados Unidos, que deixou as pessoas totalmente indefesas. Hoje são seus filhos e netos que saem às ruas, exigindo que mude que todo o sistema neoliberal implantado pela ditadura.
É preciso reconhecer que esse modelo neoliberal faz isso: gera riqueza, mas esgotados os recursos naturais e mão de obra, essa riqueza vai se concentrar em poucas mãos.
HUGO GUTIÉRREZ
Deputado chileno
O Chile teve governos de esquerda, com Ricardo Lagos e Michelle Bachelet. Por que eles não mudaram?
Bachelet tentou iniciar um processo constituinte, que permitisse dar respostas fundamentais. Lamentavelmente, um sério inconveniente que experimentou seu filho (Sebastián foi investigado por suposta fraude contra um empresário local) fez com que toda a agenda legislativa e constitucional da presidente desmoronasse. Fizemos parte de seu segundo governo, lembre-se que antes ficamos excluídos por 20 anos. Havia um acordo institucional para que fôssemos excluídos. Ficamos 20 anos excluídos da política. Fomos excluídos e perseguidos pela ditadura e depois, a partir do acordo imposto pelos EUA para fazer a transição no Chile.
O que é possível mudar no modelo chileno?
O modelo econômico chileno foi imposto durante a ditadura. Consiste em concentração de riqueza em poucas mãos, com a crença de que essas pessoas vão eventualmente distribuí-la para abaixo, a "política del chorreo" (teoria segundo a qual, se a economia cresce, os benefícios vão caindo para todos os lados). É também uma imaginação. Só ocorre para um lado. Isso tem a ver com a receita do FMI, de que todas as despesas do Estado deveriam estar nas mãos privadas, de que são mais eficazes na produção de riqueza. Isso gerou em um primeiro momento riqueza, permitiu às pessoas sair da pobreza. Mas é preciso reconhecer que esse modelo neoliberal faz isso: gera riqueza, mas esgotados os recursos naturais e mão de obra, essa riqueza vai se concentrar em poucas mãos. Foi o que aconteceu: 1% da população detém 26% de toda a riqueza nacional.
Esses movimentos que ocorrem em vários países latino-americanos de alguma forma estão articulados pela esquerda?
Os governos de direita estão todos sendo gerenciados pelos EUA. Creio que EUA, com sua luta na Ásia pelo controle do petróleo, descuidaram por um tempo da América Latina. Isso fez com que A América Latina, sentindo-se mais independente e menos colônia, avançasse de maneira significativa em processos democráticos que permitiram a instalação de governos progressistas. Não eram governos comunistas. Eram progressistas. Esses governos começaram a fazer reformas em prol do interesse das pessoas, que se distribuísse melhor a riqueza, que se cuidasse da melhor maneira os recursos naturais. Os EUA não gostaram porque viram nesses governos progressistas orientação socialista. Se dispuseram a acabar com eles e é o que estão fazendo. Mas ficou na memória das pessoas que esses governos tinham trazido progresso pessoal, tinham permitido que estivessem melhor. Essa memória fez com quem muitas pessoas saíssem às ruas. É o que está acontecendo, depois da avalanche neoconservadora.
E vocês estão unidos às marchas?
Como partido, estamos nas ruas. E inclusive organizando as manifestações. Não estamos alheios aos movimentos sociais. Creio que é necessário seguir lutando aí. A Mesa de Unidad Social, que tem convocado ultimamente as manifestações, é uma instância onde também estão os partidos políticos progressistas. Estamos na Mesa, com todos os movimentos e partidos políticos.
Então, vocês acreditam que o primeiro passo para mudar o modelo é a saída de Piñera e nova Constituição?
Seria que Piñera fosse embora, que assumira o presidente do Senado e que se começasse um processo constituinte para dar ao país uma nova Constituição.
E o que vocês propõem como mudança na Constituição?
É necessário recobrar o Estado do Chile. O Estado do Chile não pertence aos chilenos e chilenas, ele foi sequestrado pelos empresários e o mantêm para seu desfrute. Temos de recuperar o Estado de chile.