Correção: a foto que ilustra esta coluna retrata a sede do jornal El Mercurio, em Valparaiso, e não saques e incêndios em Santiago, como informado na legenda que acompanhava a imagem entre 11h43min e 15h19min de 21 de outubro de 2019. A legenda foi corrigida.
Não é só por R$ 0,20, o valor equivalente em reais ao aumento de 3,75% no preço da tarifa do metrô, que os chilenos estão nas ruas. Prova disso é que o presidente Sebastián Piñera recuou do decreto que elevou o preço – como fizera, na semana passada Lenín Moreno sobre os combustíveis no Equador, estancando a crise –, e nada mudou: a população continuou nas ruas, saqueando lojas e mercados e desafiando os blindados das forças armadas.
A conta chegou para o governo e, quando me refiro ao governo, estou falando dos últimos que moraram no Palácio de La Moneda, à direita ou à esquerda. Nenhum, nem Michelle Bachelet muito menos Sebastián Piñera, conseguiu lidar com o principal problema do pobre país rico: o bolo de uma nação que deve crescer 2,5% em 2019 não é dividido entre o cidadão comum, que recebe um salário mínimo equivalente a R$ 1,2 mil. Parece muito pra nós, brasileiros, mas é muito pouco para os chilenos, que vivem em uma nação com alto custo de vida (a energia elétrica subiu 10% em setembro, por exemplo), onde tudo é privatizado, da educação à saúde.
A população está farta de anos de medidas liberalizantes que colocaram o país entre os mais ricos da América Latina seguindo a cartilha dos liberais de Chicago, mas entre os mais pobres da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube que o governo Jair Bolsonaro deseja ver o Brasil como membro.
Junte-se a isso anos de insatisfação contida: não é de hoje que os estudantes vão para as ruas no Chile. Eles protestam desde 2011 pedindo gratuidade no ensino superior. Mas pouco foram ouvidos — com alguma exceção no governo Bachelet. Há corrupção em todos os níveis, principalmente na polícia e nas forças armadas, que, no Chile que viveu a mais sangrenta ditadura do Cone Sul, exerce um poder quase paralelo. Mas nada disso tem maior impacto para fazer a panela de pressão estourar do que o sistema previdenciário.
As medidas liberalizantes começaram pelas mãos do então ministro do Trabalho José Piñera, irmão mais velho do atual presidente e artífice da reforma da Previdência de 1981, que, em parte, o ministro Paulo Guedes gostaria de imitar no Brasil. O plano, que Piñera (o ex-ministro) resolveu colocar na prática tinha como subsídios conceitos teóricos do economista Milton Friedman nunca antes aplicados à vida real. Consiste em cada trabalhador depositar em uma poupança individual pelo menos 10% de seu salário (obrigatório por lei) por 20 anos. Esse dinheiro financia a aposentadora. Não há um fundo público, como no Brasil.
Agora, o Chile envelheceu – e tanto aposentados quanto governo se deram conta de que é impossível viver como idoso com um salário equivalente a R$ 690. Mais de 90% dos aposentados chilenos recebem essa aposentadoria – ou seja, a metade do salário mínimo da população economicamente ativa. No país onde tudo é privado, não são apenas os pais e avós que sofrem com o baixo valor. Isso se reflete na educação dos filhos, hoje jovens que enfrentam os carabineiros em Santiago.