Uma das principais pesquisadoras brasileiras de temas ligados à América Latina, Daniela Campello vê com preocupação as crises atuais em países como Peru, Equador, Venezuela, Argentina. Mas não chega a ser uma surpresa para a cientista política e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
– Essa é a terceira grande reversão econômica na América Latina. A primeira foi na metade dos anos 1960, quando houve a virada toda dos governos militares, a segunda, na metade dos anos 1980, com a redemocratização, e a terceira agora. É um período delicado para a região toda – afirma.
Junto com o professor Cesar Zucco, Daniela realizou, em 2017, um estudo que aponta duas variáveis externas como preponderantes para garantir os altos índices de popularidade de um político: a taxa de juros dos EUA e o preço das commodities. O indicador, chamado de “Bons tempos econômicos”, faz uso de análises estatísticas para comprovar o impacto nos resultados eleitorais e pesquisas de popularidade dos últimos 30 anos em 18 países da América Latina. Em entrevista à coluna, a pesquisadora comentou a instabilidade no continente e os riscos de contágio pelo Brasil.
Peru e Equador em crise política. Quais os impactos possíveis na economia brasileira?
O Equador é um país pequeno, que não tem grande impacto econômico. Peru também não chega a ter. Não temos o mesmo nível de integração (com essas nações) se comparado aos países do Mercosul. O que me preocupa é o risco de contágio político. Está se criando na região uma sensação de incerteza política. A região toda está passando por um processo que é comum: um país entra em crise, outro tira o presidente, no terceiro para tudo. Isso gera uma sensação de que a região está em crise. A eleição do governo de Jair Bolsonaro no Brasil abriu espaço para candidatos próximos dele ou parecidos com ele em outros países. Há uma certa difusão política que acontece na região.
Embora a senhora acredite que o risco é mais político do que econômico, um cenário de América Latina instável não acaba afastando investidores?
Temos hoje um tamanho menor no mundo do que há seis anos. A imagem da região hoje é de instabilidade política, de governos populistas, de certo risco à democracia. Se você está investindo em um país como Peru ou Equador e acontece uma crise como essa, você repensa o seu papel na região como investidor.
Para o Brasil, a principal preocupação acaba sendo a Argentina, principal parceiro econômico no continente. A possível vitória do kirchnerismo nas eleições do dia 27 pode significar uma tendência de retorno do pêndulo político do continente para a esquerda?
Esse pêndulo tem ligação muito forte com fatores internacionais e com a situação da América Latina no mundo. O pêndulo para a esquerda aconteceu em momento muito propício: o boom das commodities, a China entrando no mercado internacional, muito dinheiro entrando na economia via comércio e investimentos. Com perspectiva de crescimento, os investidores se sentem atraídos. Havia juros muito baixos também. O mercado financeiro estava olhando muito para a América Latina. Isso gerou uma quantidade de receita, de ingresso de dólares, que gerou espaço para governos de esquerda não precisarem de discursos ou políticas que atraíssem investimentos. O investimento já estava aqui, o dinheiro já estava entrando.
O pêndulo para a esquerda aconteceu em momento muito propício: o boom das commodities, a China entrando no mercado internacional, muito dinheiro entrando na economia via comércio e investimentos.
DANIELA CAMPELLO
Cientista política FGV
Não precisavam de uma agenda liberalizante?
Não precisa de uma agenda pró-investidor, voltada para atrair o mercado, ganhar confiança. A Bolívia, por exemplo, cresceu nos últimos anos, manteve uma agenda de esquerda bastante forte e, no entanto, conseguiu investimento, conseguiu emitir bônus no Exterior. Há uma margem de manobra dos governos de esquerda para adotarem esse tipo de política. Minha leitura é de que a margem já não é mais aquela. Os preços das commodities deram uma desacelerada muito forte. O investimento não está vindo para cá. Tem pouca margem. Isso eu disse no Equador, antes de entrar o governo de Lenín Moreno. Eu disse que, mesmo que entrasse Lenín Moreno, ele iria fazer um giro para a direita, porque as condições não eram mais as que eram no período de Rafael Correa. A Argentina não tem poder de barganha para desprezar ou criar uma questão com o Brasil. Acho que o tipo de política externa que o Brasil está adotando em relação ao mundo em geral e à Argentina em particular, de o presidente Bolsonaro dizer que o candidato dele é Mauricio Macri e dizer para que os argentinos votem em Macri, cria uma situação diplomática complicada. De novo, acho que não é uma questão econômica. É uma questão de postura política do Brasil, e não da Argentina.
Cada crise no continente teve um estopim diferente. Mas há algo comum entre esses países?
A América Latina tem um tipo de inserção internacional que está muito ligada ao fato de sermos exportadores de commodities e importadores de capital. A gente criou um indicador, que é um resumo dos preços de commodities e das taxas de juro americana. O indicador sobe quando as commodities sobem, e os juros descem. E o index desce quando o contrário acontece. Esse indicador, que a gente chama de Índice de Bons Tempos Econômicos, mostra quão favorável é o cenário internacional para a América Latina. Nenhum dos dois fatores pode ser controlado pelos presidentes: nem taxa de juro americana nem preço das commodities. Esse índice vinha caindo nos anos 1960, subiu com o boom do preço do petróleo nos anos 1970 e caiu com os juros americanos, que subiram muito nos anos 1980. O que aconteceu entre 2003 e 2011, basicamente durante o período Lula na Presidência, é que esse índice subiu de uma maneira muito forte, foi um período muito bom para a região, uma bonança grande, em que as nossas questões distributivas ficaram de certa forma mitigadas. Como a torta está crescendo, você consegue agradar gregos e troianos, ricos e pobres, que foi o que aconteceu com Lula, com Álvaro Uribe, com Hugo Chávez. O impacto desse cenário favorável se reflete em presidentes mais populares, com mais chances de reeleição, que mudam a Constituição para continuar no poder e a população aceita. Há transições mais regulares de governo. Essa é a parte positiva. Depois de 2011, esse índice reverte drasticamente, é o período de Dilma Rousseff no Brasil. Isso aconteceu na região toda. Se você pega a popularidade de um presidente hoje, em qualquer lugar da América do Sul, é mais baixa do que em 2010. A situação ficou muito mais complicada. O que há de comum entre essas crises todas é essa reversão. Passa-se a ter governos fracos, em que a questão distributiva fica muito mais forte. O governo tem de fazer uma opção, não dá mais para agradar ricos e pobres. Essa reversão aconteceu muito fortemente no colo de Macri, que pode ter errado em uma série de coisas, mas o fato é que ele pegou um cenário que não era o de Cristina Kirchner.
(A reversão da economia) caiu no colo do Macri, da Dilma, do Lenín Moreno. Há uma reversão econômica muito forte. Essa é a terceira grande reversão na América Latina, desde que a gente tem o indicador, nos anos 1960.
DANIELA CAMPELLO
Cientista política FGV
No debate eleitoral de domingo (13), Macri chegou a dizer que pensou que seria mais fácil governar o país.
Macri apanha da direita e da esquerda. A direita diz que ele não fez o que tinha de fazer muito rápido, e a esquerda afirma que ele tomou medidas neoliberais e destruiu o país. O fato é que ele tentou de alguma maneira administrar a dor dessas medidas e foi pego de calças curtas. (A reversão da economia) caiu no colo do Macri, da Dilma, do Lenín Moreno. Há uma reversão econômica muito forte. Essa é a terceira grande reversão na América Latina, desde que a gente tem o indicador, nos anos 1960. A primeira foi na metade dos anos 1960, quando houve a virada toda dos governos militares, a segunda, na metade dos anos 1980, com a redemocratização, e a terceira agora. É um período delicado para a região toda. Junto, veio a questão da Odebrecht, que pegou no Peru, na Argentina, no Equador. Dependendo da maneira como é entendida pela população, gera uma sensação de infelicidade econômica e um descrédito absoluto na política. Uma coisa é você estar muito insatisfeito com o governo e falar: "Vou votar contra esse governo, vou eleger outro". Outra coisa é dizer: "Estou insatisfeito com o governo e com a democracia". E isso é o que a gente vê na região: o indicador de confiança na democracia despenca nesse período de reversão do índice, a partir de 2011, em toda a região. O caso do Equador é muito clássico, era um candidato de esquerda, que fez uma virada à direita, que acontece a três por dois na América Latina. Dois terços dos governos de esquerda na América Latina viram para a direita e o fazem exatamente nesses períodos de reversão (da economia), de falta de dólar, porque aí você precisa criar uma agenda para atender o investidor, essa agenda neoliberal. No Equador, Lenín Moreno veio com discurso de esquerda, virou para a direita e adotou um plano de FMI que lembra Lucio Gutiérrez em 2002. Era um candidato de esquerda, que fez uma virada para direita e firmou um acordo duro com FMI. A galera foi para a rua. No Equador, foi-se para a rua durante muito tempo até chegar Rafael Correa. Era crônica de uma morte anunciada. Me admira como Lenín não imaginou que fosse dar no que deu.
A guerra comercial entre EUA e China pode ter contribuído para essas crises no continente?
O mais forte foi essa reversão rápida dos preços das commodities. Junto a isso o cenário internacional negativo. Em geral, nessas situações, o capital migra para os EUA. Diante de qualquer sensação de insegurança no mundo, o dinheiro vai para o dólar. Não está favorável para investimento no Terceiro Mundo. Junta-se o fato de que a gente tem pouca perspectiva de crescimento e um cenário incerto politicamente. Estamos em um momento de crise econômica, sem perspectiva de grande crescimento, com cenário externo em que o investidor quer colocar seu dinheiro na segurança porque não sabe o que vai acontecer. Não é um cenário favorável para gente. Até vejo alguém eventualmente dizer que a crise EUA e China vai gerar oportunidade de exportação para gente, mas acho que vai gerar muito mais insegurança no mundo. O saldo, no final das contas, é negativo.