Pouco antes da vitória de domingo nas eleições que mantiveram seu Partido Socialista no poder, o primeiro-ministro de Portugal, António Costa, pronunciou uma frase que soou como um profecia à Europa cansada das turbulências desse 2019:
— Podem ficar tranquilos, não somos santos milagreiros. Somos um governo responsável. Santos milagreiros são algo de que não nos livramos na América Latina. E, ainda que a esquerda do lado de cá do Atlântico mire a península ibérica como bastião de resistência em um continente que dobra à direita, é difícil por aqui dispensar milagres, rogados aos mesmos próceres do altar político. Figuras carimbadas à direita e à esquerda se repetem nos três processos eleitorais que a região vivenciará nos próximos dias — em Bolívia, Argentina e Uruguai.
No Peru, abalado pelos reflexos tardios da Lava-Jato, que investiga quatro ex-presidentes, pululam velhos santos que fazem as vezes de fantasmas. Hoje, 19 anos após encerrada a era Alberto Fujimori, nenhuma folha se mexe no país sem o dedo do fujimorismo — ainda que o ex-presidente e sua filha Keiko estejam presos. Nos últimos dias, o presidente Martín Vizcarra dissolveu o Congresso, medida prevista pela Constituição, embora com ares do mofo autoritário latino, para evitar a Suprema Corte viciada pelos herdeiros de El Chino.
Também no Equador a política ressuscita espectros outrora exorcizados. O presidente Lenín Moreno enfrenta uma crise que o levou a mudar a sede administrativa de Quito para Guaiaquil devido a protestos deflagrados por cortes nos subsídios dos combustíveis. Por trás do movimento, está o ausente mais presente da política do país: Rafael Correa. Ex-afilhado político de Hugo Chávez, envolvido em denúncias de corrupção da Lava-Jato, esse "santo" equatoriano ressurgiu do autoexílio na Bélgica.
Mas olhemos para a frente, vejamos as eleições, que, afinal, sempre trazem esperança de renovação. Forças de esquerda na Bolívia, na Argentina e no Uruguai deixam de lado as rusgas coloniais entre os impérios espanhol e português e se inspiram no Partido Socialista de Costa. Na Argentina, os resultados das primárias fizeram a esquerda acreditar que o pêndulo da história, empurrado para a direita nesta segunda década do século 21, pode tomar sentido contrário. Não sem velhos "milagreiros": Alberto Fernández precisa de Cristina Kirchner para chegar ao poder, e também a ex-presidente necessita de seu ex-chefe de gabinete para retornar à Casa Rosada. Ele atrai os empresários. Ela movimenta as massas. Afinal, não vivemos sem populismos por aqui.
Fernández e Cristina lançaram o programa Argentina Sem Fome, inspirado no Fome Zero, e prometeram reativar a Atribuição Universal por Filho, leia-se Bolsa Família. No país de 15 milhões de pobres, o apelo é grande. Também o atual presidente Mauricio Macri apelou à esperança, exagerando em mensagens positivas em marchas chamadas "Sí se puede". As pesquisas mostram que o 27 de outubro terá emoção. Um instituto aponta que Fernández terá ao menos 48% dos votos, contra 30% de Macri. Outro dá 50% à oposição contra 27,9% do atual presidente. Nos dois casos, a esquerda volta ao poder sem segundo turno.
Do lado de cá do Rio da Prata, os uruguaios vão às urnas no mesmo dia, mas em situação inversa. A direita ameaça a hegemonia de 15 anos da esquerda. Sem o carisma de Tabaré Vazquez e José Mujica, cabe a Daniel Martínez tentar o quarto mandato da Frente Ampla. Levantamentos mostram que Martínez vence o primeiro turno com 30% dos votos, mas o Partido Nacional, de Luis Lacalle Pou, conquistaria entre 23% e 26%, o que forçaria o segundo turno. Na ballotage, a união dos partidos de direita — mesmo entre os rivais blancos e colorados — pode desbancar a esquerda que, nos últimos anos, apresentou medidas progressistas como a legalização da maconha e o casamento gay.
Na Bolívia, que vai às urnas no dia 20, Evo Morales tenta o quarto mandato mais distante de Maduro e mais próximo de Jair Bolsonaro. É o último representante do que foi uma espécie de eixo bolivariano na região. Mas os protestos cresceram. Com as crises no Peru e no Equador, ainda que por razões diversas, é difícil que o altiplano boliviano passe incólume. Morales sabe que, se não ganhar no primeiro turno, o cenário se complicará no segundo.
São difíceis as comparações com qualquer país latino-americano, mas a receita de Portugal, país que quase foi à bancarrota em 2013, é a seguinte: Costa foi na contramão da austeridade de Grécia e Irlanda, reverteu cortes nos salários e pensões e ofereceu incentivos às empresas (inclusive chinesas). Assim, renova o mandato com déficit público reduzido a 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB), crescimento em 2018 de 2,4% e desemprego em queda. O país diz bem-vindo a imigrantes em uma Europa que, em geral, lhes fecha as portas. Não há rezas, não há santos. Há novos nomes e rostos. Há dinamismo, pragmatismo e renovação, algo difícil por aqui. Enquanto a esquerda latino-americana continuar ajoelhando diante dos mesmos altares e venerando antigos mártires, repetirá velhos e limitados milagres.