Para tentar decifrar o futuro das relações entre Argentina e Brasil a partir da eleição do próximo domingo, empresários debruçam-se, de lupa, sobre os planos de governo e prendem-se a detalhes de cada pronunciamento dos dois principais candidatos à Casa Rosada, o presidente Mauricio Macri, que tenta a reeleição, e o peronista Alberto Fernández.
A possibilidade de a oposição vencer com folga no primeiro turno, como apontam pesquisas, é vista com preocupação devido ao protecionismo que marcou parte do governo de Cristina Kirchner, vice na chapa de Fernández. A expectativa também se deve à tensão em razão de declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o favoritismo de Fernández e Cristina. Na quarta-feira (23), no Japão, ele ameaçou pedir a suspensão do país vizinho do Mercosul, se o país resistir à abertura econômica. Em agosto, no Rio Grande do Sul, afirmou que a "esquerdalha deu sinal de vida", após as primárias.
Em entrevista à coluna, o presidente da Câmara de Comércio Argentino-Brasileira (Camarbra), Federico Antonio Servideo, avalia as perspectivas para as trocas comerciais diante de uma vitória de Fernández, o acordo entre Mercosul e União Europeia (UE) e os reflexos da atual crise em países vizinhos. A seguir, os principais trechos.
Como vocês avaliam a possibilidade de retorno do kirchnerismo ao poder nas eleições de domingo na Argentina?
Tem sido um processo muito longo, porque a Argentina está nessa etapa política, eleitoral e econômica há muitos meses. É difícil estimar como um eventual governo de Fernández ou Macri irá reagir. Está sendo muito difícil para nós. Estamos avaliando as declarações dos dois candidatos. Esperamos que a racionalidade venha para ficar e que o relacionamento entre os dois países continue a se desenvolver de maneira razoável, o que implicará talvez discutir alguns acordos. Porém, na nossa percepção, isso não implicará retrocessos significativos na relação bilateral.
O acordo entre Mercosul e UE corre risco, caso Fernández e Cristina Kirchner vençam?
As declarações do candidato Fernández não foram muito enfáticas e precisas. Porém, em nenhum momento a gente percebe declarações contra o acordo. Fernández dá algumas declarações sobre a necessidade de aprimorar, entender ou detalhar alguns aspectos, porém, pela nossa interpretação, não existe risco de ele abandonar totalmente esse acordo, algo que seria muito pouco apropriado nessas circunstâncias. Depois de 20 anos, recuar nesse acordo seria muito ruim. Não vejo risco de que o acordo seja abandonado.
Em visita ao Rio Grande do Sul, em agosto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que "a esquerdalha deu sinal de vida", referindo-se à vitória de Fernández e Cristina nas primárias e seu favoritismo para as eleições de domingo. Essa tensão entre o governo brasileiro e um possível retorno dos peronistas pode prejudicar as relações comerciais entre os dois países?
Fernández teve uma reação muito forte no começo diante das declarações do presidente Bolsonaro. Porém, reconheceu o erro e colocou os (interesses dos) países acima de presidentes ou candidatos. Países estão acima de eventuais presidentes temporários ou candidatos a presidente. Com todo o respeito que o presidente Bolsonaro merece, não deixam de ser declarações inoportunas. Opinar dessa forma, perante um processo eleitoral de um país tão importante para a relação bilateral, não deixa de ser inoportuno. São declarações de campanha, de um lado e de outro. Para países, a relação bilateral acaba prevalecendo perante essas declarações. Não vejo animosidade. Na Argentina, um candidato ou outro tem de reconhecer que boa parte do desenvolvimento social e econômico depende de uma relação saudável, madura com o Brasil. A Argentina depende do Brasil muito mais do que o Brasil da Argentina. Isso tem de ser reconhecido pelas duas partes. A Argentina tem de reconhecer isso. E o Brasil tem de reconhecer essa responsabilidade por ser a maior economia da América do Sul.
Na Argentina, um candidato ou outro tem de reconhecer que boa parte do desenvolvimento social e econômico depende de uma relação saudável, madura com o Brasil.
FEDERICO ANTONIO SERVIDEO
Que avaliação o senhor faz do governo Macri nas relações econômicas com Brasil nesses quatro anos?
No governo Macri, nos últimos quatro anos teve um certo avanço parcial na relação bilateral. Porém, nos quatro anos de governo Macri a relação bilateral continuou muito baseada em poucas plataformas. A relação comercial Brasil e Argentina está muito baseada na plataforma automotiva, que é um bom exemplo de integração bilateral, porém concentrou boa parte da relação comercial. E pelo lado das exportações da Argentina para o Brasil muito concentradas no trigo. E do Brasil para a Argentina, bastante concentrada, além da plataforma automotiva, na plataforma petroquímica. Nos quatro anos de governo Macri não se tem conseguido incrementar quantitativamente e diversificar essa integração comercial. A ideia de criar cadeias integradas de produção não avançou significativamente nada nos últimos quatro anos.
Tendo acompanhado os anos de Néstor e Cristina Kirchner no poder na Argentina, pode-se esperar protecionismo em caso de vitória de Alberto Fernández?
Tendem a ser (protecionistas). O peronismo, o populismo de esquerda, o peronismo pode ser qualquer coisa na Argentina. Mas o governo Kirchner, notadamente o primeiro governo de Cristina foi muito protecionistas e fechados em uma outra realidade macroeconômica. Não acho que eventual governo de Cristina e Fernández agora tenha possibilidade de solucionar os problemas fechando a economia. A Argentina precisa dos dólares vindo das exportações para equilibrar um pouco suas contas. Para exportar, a Argentina vai ter de importar alguns insumos. Eu não vejo a possibilidade econômica concreta de significativo fechamento da economia argentina nesse momento, muito pela situação macroeconômica, pela situação fiscal do país, não tanto pela ideologia. Um eventual governo Fernández, para fomentar exportações, vai fomentar consumo, porém não vejo que fecharia a economia como na época de Cristina.
E as ameaças do governo brasileiro de sair do Mercosul, caso a Argentina rejeite a abertura ampla da economia?
Qualquer membro pode sair, existe todo um protocolo, uma regulamentação que permitiria a saída do Brasil do Mercosul. Não acredito que aconteça. Levaria de alguma forma a desaparecimento do acordo, porque hoje o Brasil representa mais de 70% do Mercosul. Perante esse acordo com a União Europeia, a saída do Brasil do Mercosul provocaria revisitar todo o próprio acordo, dado que a UE firmou acordo com o Mercosul. Essa expectativa de saída não é viável no curto prazo. Sim, é viável modernizar, atualizar, o Mercosul para permitir um são equilíbrio entre os interesses do bloco e para que países como o Brasil possam não estar limitados por uma série de regulamentações do Mercosul e desenvolver seus relacionamentos multilaterais ou bilaterais em paralelo ao Mercosul. Vejo esse tipo de ideias ou eventualmente ameaças são fatores para acelerar a modernização institucional do Mercosul que permita uma sã convivência entre uma participação em um bloco e o desenvolvimento dos países membros desse bloco ao mesmo tempo.
Qual o risco de Argentina e Brasil serem contaminados pelas atuais crises no Chile, Bolívia, Equador e Venezuela?
Estamos avaliando com bastante foco o que está acontecendo na América Latina. Tanto Argentina quanto Brasil têm de entender e aprender. Venezuela é um caso a parte, um problema político e institucional diferente. Porém, o que aconteceu no Chile e no Equador é que os modelos que não permitem distribuir melhor as riquezas entre toda a população em algum momento se esgotam e produzem eventos como os que estamos vendo. De alguma forma o resultado das eleições primárias na Argentina (em que a oposição obteve ampla vitória) não deixa de ser uma manifestação, e nesse caso pacífica e diferente, de um profundo desconforto de uma população que não se sente compensada. Argentina e Brasil têm de olhar com cuidado os programas de distribuição da riqueza entre a sua população porque os resultados potenciais podem vir a aparecer como estão aparecendo no Chile, Equador e no resultado das primárias (argentinas).