Toda a América do Sul está em crise?
Com exceção de Guiana, Guiana Francesa e Suriname, todos os vizinhos do Brasil vivem, em maior ou menor grau, algum nível de instabilidade política ou econômica. O caso mais grave — e antigo — é a Venezuela, mergulhada em um caos social e institucional aprofundado pelo endurecimento do governo de Nicolás Maduro depois da autoproclamação de Juan Guaidó como presidente, em janeiro.
Equador e Peru também viveram momentos de tensão. O primeiro, com rebelião que obrigou o presidente Lenín Moreno a mudar a sede do Executivo de Lima para Guaiaquil este mês; e o segundo tendo experimentado, por 24 horas, situação semelhante a da Venezuela, com dois presidentes ao mesmo tempo.
O Chile explodiu em protestos na sexta-feira (18), que culminaram em violência — pelo menos 18 pessoas morreram até agora. Depois da eleição de domingo (20), também a Bolívia ficou conflagrada.
A Argentina, embora sem violência, vive uma das mais tensas corridas presidenciais das últimas décadas, imersa em crise econômica, desvalorização do peso e inflação.
Os países onde a situação é menos grave até o momento é Colômbia (mesmo assim, um braço dos Farc anunciou a retomada da luta armada após o acordo de paz que selou o fim do conflito de 50 anos) e o Uruguai, que realiza eleições também no domingo (27). A Frente Ampla (esquerda) pode perder o poder pela primeira vez desde 2003 em parte devido à desaceleração da economia.
O Paraguai teve, alguns meses atrás, também um período de curta crise — ainda não resolvida —, após um acordo com o Brasil sobre a energia de Itaipu. A oposição abriu processo de impeachment contra o presidente Mario Abdo Benítez, mas recuou depois que o tratado foi desfeito.
Há uma causa comum para as crises?
Se pensarmos em causas imediatas, a resposta é não. Cada país tem um motivo inicial para a situação de instabilidade. Alguns exemplos: no Equador e no Chile, a população foi para as ruas contra o aumento de preços de combustíveis e do transporte público.
No Peru, a causa não foi essa. Houve a dissolução do parlamento devido a discordâncias sobre a indicação dos juízes para a Suprema Corte.
Na Bolívia, o descontentamento com o resultado da eleição, cercada de suspeitas de fraudes para favorecer a reeleição de Evo Morales, foi o estopim.
Como se vê, são motivações diferentes. Porém, há um ponto em comum: as economias da América Latina giram em torno da exportação de commodities e importação de capitais.
Em maior ou menor grau, governos estão sentindo os efeitos da queda nos preços dos produtos de exportação, como o petróleo na Venezuela, por exemplo. Na primeira década do século 21, houve o chamado "boom das commodities", quando houve uma disparada dos preços em boa parte graças ao crescimento das economias emergentes, em especial China e Índia, que favoreceram os governos locais — em geral, na ocasião, de esquerda.
Nesse período, a taxa de pobreza caiu e a desigualdade recuou em toda a América Latina. Porém, com o recuo dos preços das commodities, a situação ficou mais complicada para governos atuais. Todos os países viram suas economias estagnarem, alguns entraram em recessão, e muitos viram espocar grandes escândalos de corrupção.
Há diferenças entre os protestos de Equador, Chile e Bolívia?
O primeiro desses países a entrar na roda das crises foi o Equador. Como parte de um acordo para receber empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI), o presidente Lenín Moreno precisou cortar gastos — apostou na redução dos subsídios que, por 40 anos, regularam os preços dos combustíveis.
Com isso, o preço da gasolina subiu 123% de um dia para o outro. Liderada por indígenas, a população foi para as ruas, e o governo teve de recuar.
No Chile, o estopim também foi um reajuste de valores — só que da tarifa do metrô. O argumento do governo para o aumento: elevação do preço do petróleo, do dólar e a modernização do sistema. O valor do bilhete em Santiago nos horários de pico subiu de 800 pesos (cerca de R$ 4,63) para 830 pesos (R$ 4,80). Desde 2010, não havia um aumento dessa proporção.
Na Bolívia, a situação não tem nada a ver com aumento de preços. O país realizou eleições no domingo, e Evo Morales foi candidato de novo. Já havia questionamentos sobre sua tentativa de reeleição (para um quarto mandato). Ele está no poder desde 2006 e tem feito malabarismos jurídicos para concorrer: primeiro, a partir da nova Constituição e, agora, mesmo diante de um referendo em que o "não" venceu, ele reivindicou "o direito humano" de se candidatar.
A insatisfação de parte da população se aprofundou com uma apuração conturbada dos votos. Foram usados métodos diferentes de contagem — primeiro, por atas, que indicaram segundo turno, e, depois, voto a voto, que teria dado a vitória a Evo no primeiro turno. Observadores internacionais questionam o resultado. O presidente elevou o tom: disse que paralisações têm motivações políticas e que configuram golpe de Estado.
Há diferenças entre protestos populares e outros processos políticos nos países?
Sim, alguns países vivem revoltas nas ruas, como Bolívia e Chile. Há confrontos entre manifestantes e policiais, barricadas, saques de lojas e mercados e incêndios. O Equador viveu algo semelhante há duas semanas, mas a situação se acalmou depois que o presidente Lenín Moreno recuou do decreto de corte dos subsídios.
Em países como Argentina e Uruguai, não há protestos nas ruas ou violência política. Nos dois casos, as corridas eleitorais, embora bastante acirradas, ocorrem com tranquilidade.
Quais os riscos para as democracias?
De forma geral, as democracias da América Latina são relativamente jovens. Além do Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai, Argentina, Bolívia, Peru, entre outros, viveram processos autoritários após a Segunda Guerra Mundial.
O processo de redemocratização ocorreu a partir dos anos 1980. Na primeira década dos anos 2000, boa parte do continente viveu a chamada "onda rosa", com a ascensão de governos de centro-esquerda ou de esquerda no subcontinente — Néstor Kirchner, na Argentina, Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, Hugo Chávez, na Venezuela, José Mujica, no Uruguai, Michelle Bachelet, no Chile, e Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, são alguns exemplos. Alguns desses países, como Brasil e Paraguai, viveram processos de impeachment, com a retirada de presidentes, como Dilma Rousseff, no Brasil, e Fernando Lugo, no Paraguai. Muitos desses países, hoje, são governados por forças de centro-direita, como o Brasil do presidente Jair Bolsonaro, o Chile, de Sebastián Piñera, a Argentina, de Mauricio Macri, o Paraguai, de Mario Abdo, e o Peru, de Martín Vizcarra.
A corrupção, problema presente em maior ou menor grau em todas as nações latino-americanas, ficou escancarada a partir de conexões da Lava-Jato — no Peru, por exemplo, quatro ex-presidentes são acusados de envolvimento em propina da Odebrecht, um deles, Alan García, se matou quando a polícia foi a sua casa cumprir mandado de prisão. Também em comum há forte polarização política e o questionamento das instituições, como os partidos políticos tradicionais.
São crises dos modelos de direita e esquerda?
Tanto governos de direita quanto de esquerda estão enfrentando problemas – e alguns, como Lenín Moreno, no Equador, mudaram de lado. Ele era vice de Rafael Correa (2007-2017), herdeiro do bolivarianismo de Hugo Chávez, mas, ao chegar ao poder, implementou medidas de austeridade, normalmente aplicadas pela direita.
No Peru, outro presidente de centro-direita, Martín Vizcarra, dissolveu o Congresso e marcou novas eleições (medida prevista na Constituição, caso os parlamentares tenham censurado ou negado duas moções de confiança do Conselho de Ministros, o que aconteceu). A origem da crise está na decisão do Congresso de eleger os magistrados que integrarão o Tribunal Constitucional Peruano (Suprema Corte). Vizcarra considerou a medida uma forma de a oposição controlar o Judiciário.
No mesmo lado do espectro político está Sebastián Piñera, que recuou após os protestos e a violência no Chile.
Do lado da esquerda, Evo Morales é questionado por sua tentativa de se perpetuar no poder, buscando reeleições sucessivas, mesmo após referendo popular ter negado essa possibilidade. A Venezuela, um caso a parte por sua gravidade que foge do padrão, está em meio a um impasse institucional (com um presidente agarrado ao poder, Nicolás Maduro, e outro reconhecido por grande parte da comunidade internacional, Juan Guaidó). A inflação prevista para 2019 é de 10.000.000% ao ano, segundo o FMI.