Reflexo de medidas liberais que remontam aos anos 1980 e à ditadura de Augusto Pinochet, a crise que levou os chilenos às ruas é uma espécie de "basta" da população, na opinião da professora Jacqueline Angélica Hernández Haffner, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS.
Chilena de Santiago, a pesquisadora, pós-doutora em Economia, vive no Brasil há 30 anos.
— A população disse "chega", não temos mais como pagar — explicou Jacqueline, em entrevista à coluna.
A seguir, os principais trechos da conversa.
O aumento do preço do metrô foi só o estopim da crise. Que outras insatisfações estão por trás dos protestos no Chile?
O Chile, depois do golpe militar, sob comando de Augusto Pinochet, implementou uma linha econômica da Escola de Chicago, a linha liberal, de privatizar a economia. Depois, veio a democratização, passaram-se anos até que a questão política se estabilizasse. Há dois governos pelo menos, a questão vem se complicando. A presidente Michele Bachelet tentou implementar várias medidas sociais. Sebastián Piñera e Bachelet têm se alternado no poder nos últimos quatro mandatos. Esse segundo mandato de Piñera tem sido bastante complicado em termos de resultados econômicos. Apesar de todos os indicadores econômicos colocarem o Chile como exemplo de estabilidade na América do Sul, os indicadores sociais por trás disso são complicados. Já no último governo de Bachelet houve bastante manifestações, primeiro por causa da educação. No Chile, o setor educacional universitário é totalmente pago, não tem gratuidade, como no Brasil. Então, todo mundo que estuda tem de pagar. Quem não tem dinheiro tem de pegar empréstimo do governo. Depois que a pessoa se forma, o valor tem de ser devolvido para o Estado. Muita gente fica devendo muito dinheiro. Existe escola pública para o nível primário e o secundário: são totalmente públicas, mistas, que o governo dá subsídios, e privadas. Também existe a reclamação sobre a deterioração do repasse do investimento para as escolas públicas. Essa foi a primeira demanda pela qual ocorreram os primeiros protestos, no governo Bachelet.
E a questão da previdência, que, no Chile, é totalmente privada. Essa pode ser uma das raízes da crise?
O sistema de aposentadoria é totalmente privado há muitos anos. As empresas gerenciam os recursos das pessoas. Então, os cidadãos têm liberdade para escolher em que empresa vão colocar seu dinheiro e como ele será gerido. Isso está trazendo muita complicação também porque a gente não sabe quanto tempo vai viver, mesmo vivendo a gente não sabe que condições de vida terá. Pode-se ter excelente saúde ou ter uma velhice muito ruim.
De repente, é necessário elevar os gastos com saúde e aquele valor depositado em título de capitalização não é suficiente?
Exatamente. E a saúde também é privada. Existe um sistema público de saúde, como o nosso SUS (no Brasil), mas, mesmo assim, as pessoas têm de contribuir com alguma parcela. Para você ser atendido pelo "SUS chileno", você tem de ser muito pobre. Você tem de comprovar que está em estado de miséria ou emergência, daí você é atendido. Não vão negar atendimento. Mas, caso contrário, você tem de pagar por atendimento.
As classes média e média baixa vão ficando cada vez mais excluídas porque os salários deles não são suficientes para pagar todos esses serviços privados
JACQUELINE HAFFNER
A que fatia social pertence à população que está nas ruas?
Classe média baixa. O Chile foi privatizando todos os setores da economia. Até a água foi vendida. Já pertence aos espanhóis. Todos os setores econômicos foram privatizados. Em Santiago, há autopistas rápidas, que se paga para circular. Caso contrário, você tem de que contornar a cidade, o trânsito é mais lento. As vias públicas não são privatizadas, mas as privatizadas são muito mais rápidas e eficientes. Isso dentro da cidade. As classes média e média baixa vão ficando cada vez mais excluídas porque os salários deles não são suficientes para pagar todos esses serviços privados, que são muito eficientes. Se você for para Santiago, como turista, vai achar maravilhoso: tudo funciona, tudo é limpo, o metrô funciona como na Europa, mas é tudo privado. O custo disso para a população é cada vez maior. Os salários não aumentam. Esse ano, a economia não tem mostrado indicadores positivos. Esse pequeno aumento no metrô foi o estopim, um momento em que a população disse "chega", não temos mais como pagar. A via não é a violência. Fico apavorada quando vejo essas coisas, mas acredito que é um "basta" para dizer: "Olha, precisamos de mais serviços públicos, que não sejam tão onerosos para a população".
Chama a atenção que nem a direita nem a esquerda conseguiram resolver o problema da desigualdade. Por quê?
Sim, porque desde 1973 que esse modelo econômico persiste. Como o Chile há muitos anos, desde que ganhou no "não" à continuidade dos militares, o Chile é um país dividido politicamente. A concertación ganhou com 51% dos votos. Os militares ficaram com 49%. Isso permanece no Chile. Há parte da população que até hoje é pinochetista, é como se os velhos no Brasil que amam Getúlio Vargas (ex-presidente brasileiro). É muito forte isso. Existe uma divisão muito grande entre os favoráveis e os contrários. Muita gente ainda é a favor dos militares. Para muitos, o período no qual os militares estiveram no poder, o Chile foi um país maravilhoso, tranquilo, com taxas de crescimento alto, virou o modelo maravilhoso da América do Sul.
Michele Bachelet não conseguiu implementar medidas sociais dada essa polarização?
Ela conseguiu implementar algumas coisas, como ainda é um campo minado. Meu irmão me mandou ontem o dia inteiro vídeos. Lugares saqueados, depredados, e, quando chegavam os militares havia gente aplaudindo. Acredito que tanto alguém da esquerda quanto da direita, quem assumir, precisa dialogar muito com o outro lado. Porque senão vai existir um bloqueio forte. Polarização muito dura.
O que representa as forças armadas nas ruas para os chilenos?
Dependendo da classe social, da região, principalmente em Santiago, é visto com bons olhos. Há gente que gosta dos militares e gente, principalmente da periferia, que não gosta. É uma situação de divisão bastante grande. Tanto que Piñera, a primeira medida que tomou foi colocar militares na rua. Ele poderia ter negociado mais, chamar as pessoas para o diálogo, mas foi extremamente rápido, chamou a cúpula, e não se deu o trabalho de negociar. Isso mostra como são presentes ainda na realidade do país e como têm prestígio em vários setores.