Apontado com uma das principais apostas de bilheteria de 2020, Mulan pulou a etapa de exibição no cinema e entrou direto na plataforma de streaming. O filme estreia no Brasil nesta sexta-feira (4) no Disney+. Nos Estados Unidos, o longa chegou ao serviço no começo de setembro, mas com um sistema de locação em que o assinante precisava pagar uma taxa para assistir ao longa. Por aqui, não haverá taxas.
Animação de sucesso de 1998, Mulan ganhou uma adaptação com atores, seguindo a tendência de refilmagens de clássicos da Disney — como Dumbo, Aladdin e O Rei Leão —, capitalizando em cima da nostalgia. Prevista originalmente para chegar ao cinemas no dia 26 de março, o filme teve seu lançamento postergado ao longo do ano por conta da pandemia de covid-19.
Por fim, a Disney decidiu lançar o potencial blockbuster direto na plataforma, ao contrário de outras produções que foram realocadas para 2021, como os filmes da Marvel. Foi uma decisão histórica: trata-se de um longa com orçamento de aproximadamente US$ 200 milhões, e, para essa indústria, há sempre a intenção de multiplicar o valor investido com a bilheteria. Embora os outros serviços de streaming tenham lançado produções com apelo popular nos últimos tempos, nada teria a magnitude de um épico nostálgico da Disney. A notícia pegou de surpresa as redes exibidoras, que, em situação frágil, aguardam grandes apostas para atrair o público de volta aos cinemas.
Com as salas fechadas na maior parte do globo, a empresa optou por realizar um experimento com Mulan: cobrando a taxa (US$ 29,99) aos assinantes americanos, a empresa ficaria inteiramente com os lucros, sem precisar dividir arrecadação com os exibidores. Também seria um jeito de atrair mais assinantes para o Disney+.
Segundo informações do site Deadline, o CEO da Disney, Bob Chapek, garantiu em conferência com investidores que a estratégia de lançamento de Mulan seria uma exceção e não um novo modelo de negócios.
Entretanto, talvez a opção de relegar Mulan a esse teste possa ter relação com o contexto problemático ao redor do longa, que recebeu críticas já em sua concepção e local de filmagem. E o longa? Bem, passa longe do carisma da animação noventista.
Refilmagem distinta da animação
Quando a animação Mulan estreou em 1998, a Disney trouxe uma personagem adorável e valente para os cinemas. Baseada em uma lenda chinesa, a heroína foi a segunda protagonista feminina não-europeia da empresa em longas animados — a primeira foi Pocahontas (1995). Ela também tinha a companhia de coadjuvantes simpáticos, como o dragãozinho falante Mushu (Eddie Murphy) e o grilo Gri-Li (Frank Welker).
Mulan também destoava do padrão “princesa Disney”, sendo uma heroína que fugia do paradigma de donzela em perigo e não seguia padrões pré-estabelecidos do comportamento feminino, pavimentando o caminho para que mais personagens assim surgissem em produções da empresa ao longo dos anos — vide Elsa (Frozen) e Moana.
Tanto a animação quanto a refilmagem trazem uma protagonista que se encontra entre o dilema de seguir suas raízes tradicionais ou buscar sua própria identidade. Basicamente, Mulan é uma história sobre autodescoberta individual.
Dirigida por Niki Caro (Encantadora de Baleias), a refilmagem parte da mesma premissa da animação: a trama acompanha a jovem Mulan (Liu Yifei) na China imperial, que é obrigada pelas tradições do país a encontrar um marido. Quando seu pai idoso é convocado para uma guerra, ela se disfarça de homem para lutar em seu lugar.
Para a nova versão, a Disney realizou algumas alterações. Um dos principais objetivos era aproximar a empresa do mercado da China e tentar tornar o filme um pouco mais realista. Portanto, nada de musicais ou criaturas mágicas, como Mushu. Aliás, dragão engraçadinho não pegava muito bem para o público tradicional chinês, que enxerga o ser mitológico como símbolo de respeito e poder. Embora a animação tenha apenas sido baseada na lenda, espectadores chineses se incomodaram com incongruências históricas e a visão ocidentalizada da Disney.
De qualquer maneira, a fantasia está lá: há uma nova personagem chamada Xianniang (Gong Li). Trata-se de uma bruxa com superpoderes, capaz de se transformar em animal, mas que é reprimida pelo império. Ansiando por reconhecimento e pela liberdade, ela se identifica com Mulan e se torna uma espécie de guia.
Mas há um elemento que a Disney não precisava ter removido de Mulan: a diversão. Pesando a mão na computação gráfica e em coreografias de ação que desafiam a gravidade, o longa é uma história de origem de super-heroína um tanto frio e genérico. Há muitas sequências de inverossimilhança em que não há suspensão de descrença que ajude — por exemplo, há um momento de "teletransporte", em que a personagem consegue magicamente surgir às costas do exército inimigo. Não há alívio cômico, não há personagens carismáticos, não há entusiasmo. Nem parece um filme da Disney. Podemos pensar como um filme de artes marciais, daqueles que seriam exibidos domingo à noite na TV aberta.
Positivamente, há cenas de ações vistosas, assim como o figurino e a ambientação. Tudo isso seria bastante adequado ao ecrã do cinema, o que é uma pena. Seria uma experiência proveitosa.
No final, Mulan é uma refilmagem distinta da animação, mais madura. Porém, por ser tão solene, carece de personalidade.
Como foi na China
Uma das principais intenções da Disney com Mulan era uma aproximação com o público chinês, além de impactar os espectadores americanos. Só que a desconfiança já surgiu na escolha da direção do longa: em vez de uma diretora de origem chinesa, a produção optou por uma cineasta neo-zelandesa.
Mulan estreou nos cinemas da China no dia 11 de setembro, pouco após ter sido disponibilizado no Disney+. O país, que não conta com o serviço de streaming, era o principal mercado do estúdio para o título. Só que a performance foi decepcionante, tendo em vista todo o investimento em deixar o filme atraente para o público chinês. A refilmagem abriu com US$23,2 milhões de bilheteria no país. Para efeito de comparação, Tenet teve uma estreia melhor por lá, faturando US$30 milhões.
Segundo informações da Reuters, o próprio governo chinês queria impedir a imprensa local de divulgar o lançamento de Mulan. A publicação relatou que veículos de comunicação do país receberam mensagens enviadas pela Administração do Ciberespaço da China sugerindo que o filme não fosse pauta.
Nenhuma razão foi esclarecida no aviso, mas a agência destaca que um dos motivos pode ter sido a reação no Exterior em relação às ligações com Xinjiang, local onde Mulan foi rodado. Nos créditos, o filme agradece a alguns departamentos da região autônoma. Trata-se de uma região onde estariam localizados campos de concentração em que muçulmanos são mortos ou mantidos sob condições ilegais, de acordo com organizações mundiais.