Você já deve ter ouvido alguém comentar: “Nossa, pensei que era um filme para criança, mas me desidratei chorando”. Provavelmente, seu interlocutor estava se referindo a alguma animação da Pixar. Ao longo dos anos, o estúdio virou referência para filmes que combinam belas texturas com histórias divertidas e carregadas com momentos tocantes. É só lembrar da franquia Toy Story, que deu fama à companhia a partir do pioneiro longa de 1995, ou de títulos como Procurando Nemo (2003) e Viva – A Vida É uma Festa (2017). Existe um cuidado especial ao transformar temas densos em lições para toda a família. É a fórmula que se repete com Soul, que estreia na plataforma Disney+ nesta sexta-feira natalina (25).
Essa receita esteve presente também em Divertida Mente (2015) e Up – Altas Aventuras (2009): dois filmes que resplandeciam por sua originalidade e invariavelmente obrigavam os espectadores a recorrerem ao lencinho. Apesar das lágrimas, os títulos da Pixar promovem reflexões existenciais em um conteúdo acessível e sem apelar no tom melodramático. Essas duas animações, aliás, foram assinadas por Pete Docter (em Up, junto com Bob Peterson), responsável agora pela direção de Soul.
Uma nova animação da Pixar é sempre um esperado reforço nas bilheterias dos cinemas e presença praticamente garantida no Oscar da categoria, prêmio que o estúdio tem aos montes em sua sala de troféus. A estreia no streaming imposta pela pandemia não deve afetar essa tradição.
Soul traz o primeiro protagonista negro do estúdio – na dublagem original, ele tem a voz do ator Jamie Foxx. Joe Gardner é um professor de música nova-iorquino. Frustrado com a docência e apaixonado por música, seu sonho sempre foi seguir a carreira de pianista de jazz. Até que um dia surge a oportunidade de integrar a banda da prestigiada saxofonista Dorothea Williams. Joe consegue a vaga no grupo e já no mesmo dia faria sua primeira apresentação. Era a chance que tanto aguardava. Flutuando de felicidade, o músico passeia distraído pela rua, mas um passo em falso o faz cair em um buraco.
A alma de Joe desperta na escada para o pós-vida, algo como o paraíso. O músico se desespera: não quer partir justo quando teria a sua grande chance. Ao tentar fugir dali, ele vai parar na pré-vida, onde novas almas são moldadas antes de irem para a Terra, obtendo personalidade e interesses. Conhece 22, uma alma que nunca se esforçou para descer até o plano terrestre. Meio blasé, ela não entende o apelo da vida. Joe, por sua vez, quer retornar a qualquer custo para não perder o seu sonhado show. Na esperança de conseguir essa passagem de volta, tenta auxiliar 22 a descobrir os atrativos da experiência humana.
A jornada de Soul pode ser encarada como uma sequência espiritual de Divertida Mente, em que egos metafísicos do ser humano são retratados como figuras amigáveis. Desta vez, não há avatares de emoções, mas sim almas representadas por bolhas turquesas. Novamente, a Pixar trabalha um conceito fantasioso para vender ideias complexas em uma embalagem colorida. Adicione aqui muitas piadas visuais características do estúdio – o que inclui trocas de corpos –, e Soul atinge um equilíbrio exitoso entre comédia e drama. O filme oferece um vislumbre do que nos torna humanos, não importando o quão pequeno imaginamos ser o nosso propósito na vida.
Sem ter atingido seu sonho, Joe julga que sua trajetória não teve sentido até então. Ele sente-se aprisionado, longe do caminho que visualizava. Ou seja, um humano como muitos por aí. Contudo, o músico nunca olhou atentamente para seu próprio retrospecto. Soul espelha A Felicidade Não Se Compra (1946), o clássico de Frank Capra, ao relembrar que as melhores partes da vida podem estar acontecendo quando você não está prestando atenção.