Comédias românticas me tiram do sério: eu rio, eu choro e eu fico brabo quando torcem o nariz para elas. Deve ser porque acredito no amor e no humor, no sol e nas estrelas, na confluência do acaso com o destino.
O último choque entre meu otimismo desbragado e críticos cricri foi por causa de Yesterday, que entra em cartaz nesta quinta (29) nos cinemas do Brasil. Saí da sessão para a imprensa crente de que havia acabado de assistir ao que nos Estados Unidos chamam de feelgood movie da temporada, o filme para se sentir bem, e, quem sabe, também um candidato a candidato ao Oscar (a Academia de Hollywood não gosta só de história triste). Ao pesquisar o que andavam dizendo, acabei surpreendido pela nota baixa no site Metacritic, que agrega avaliações de sites e jornais americanos, canadenses e britânicos: 56.
Quanto azedume.
Yesterday é o que a gente precisa hoje e amanhã, ontem e sempre: uma lufada de riso e de romance, de arte e de esperança, de sonho e de redenção.
O filme é dirigido pelo inglês Danny Boyle e escrito pelo neozelandês Richard Curtis. É um casamento inesperado, como convém a comédias românticas. De um lado, o realizador do macabro Cova Rasa (1994), do visceral Trainspotting (1996) e do pós-apocalíptico Extermínio (2002). Do outro, uma espécie de Quentin Tarantino do gênero, mas sem a violência, obviamente, nem a autorreferência. Como o cineasta de Era Uma Vez em... Hollywood, Curtis, 62 anos, imprime sua assinatura nos filmes que dirige – Simplesmente Amor (2003) e Questão de Tempo (2013) – ou apenas escreve (são dele os já clássicos Quatro Casamentos e um Funeral e Um Lugar Chamado Notting Hill).
Temos um protagonista masculino com humor autodepreciativo, uma personagem feminina que exala doçura, o amigo esquisito que diz verdades ultrajantes, diálogos temperados com a fina mas às vezes cruel ironia britânica, dilemas morais capazes de colocar tudo por água abaixo, uma trilha sonora pop e, fundamentalmente, um convite para que abracemos o implausível – porque, nos universos conspirados por Curtis, o amor é soberano à razão, às convenções, à ciência. Um reles dono de livraria pode conquistar o coração de uma estrela de Hollywood. O primeiro-ministro pode se apaixonar por uma funcionária. Um jovem pode viajar no tempo para reencontrar a garota ideal.
Em Yesterday, como no delicioso Questão de Tempo (se nunca viu, corra para a Netflix), Curtis volta a aplicar conceitos da ficção científica às comédias românticas. Jack Malik (interpretado com gana por Himesh Patel) é um empregado de supermercado que vem tentando, sem vitórias, emplacar uma carreira de cantor e compositor. Seus shows atraem apenas gatos pingados, como alguns amigos e a professora Ellie (Lily James, a Cinderela da versão com atores do desenho animado da Disney), que também é sua empresária, sua motorista e sua fã número 1 – não somente por causa da música. A sucessão de fracassos leva Jack a desistir. Ele precisa de um milagre, diz, certa noite, no carro de Ellie.
— Milagres acontecem — ela retruca.
— Me dê um exemplo — o aspirante a astro pede.
— Benedict Cumberbatch ter virado símbolo sexual — ela responde.
Na mesma noite, durante um estranho blecaute, Jack sofre um acidente enquanto pedalava de volta para casa. Ao acordar, descobre que é a única pessoa no planeta inteiro que se lembra dos Beatles.
A situação rende momentos ora cômicos, ora mágicos. Embora não se detenham no impacto social e nas implicações culturais dessa distopia, Boyle e Curtis dimensionam o tamanho da influência de John, Paul, George e Ringo: para o resto do mundo e para o Google, os Beatles nunca existiram, o que significa que o Oasis igualmente nunca existiu! Quando Jack canta e toca Yesterday para Ellie e um casal de amigos, é como se a canção mais regravada da história voltasse a ser inédita, é como se nós também estivéssemos descobrindo a beleza pela primeira vez.
O mundo pode ser privado dessa beleza? Não é exatamente essa a nobre pergunta que o protagonista se faz quando confronta a si mesmo refletido em um espelho. Seu impasse é faustiano: em nome da fama e do dinheiro, deve tomar para si a autoria de canções como Let It Be?
Jack assina o pacto com Mefistófeles, mas as coisas não saem como o desejado. Falta uma pequena ajuda de seus amigos.
Contar mais do que acontece daí em diante é tirar a graça e a surpresa do espectador. Basta dizer que o elenco inclui um astro da música pop, Ed Sheeran, como ele próprio, e que a comediante americana Kate McKinnon introduz ainda mais humor à trama no papel de uma ferina e absurdamente franca empresária do showbiz. Basta dizer que a perseguição de Jack à letra de Eleanor Rigby nos labirintos de sua memória ilustra a criatividade e a sofisticação dos Beatles. Basta dizer que o filme dá uma amostra de como os Fab Four poderiam ser tratados nos dias de hoje – alguns nomes de canções e de álbuns poderiam sofrer restrições mercadológicas. Basta dizer que haverá uma participação especial inusitada e epifânica, aquele momento em que – novamente, a exemplo do que faz Tarantino – a ficção se torna maior e mais solar do que a realidade. Basta dizer que, provavelmente, você sairá do cinema mais feliz do que entrou, cantarolando e aliviado pelo fato de que, neste lado da tela, os Beatles sempre existiram e sempre existirão.