Fazer a lista dos piores filmes de 2020 foi mais difícil do que elaborar o ranking dos melhores. Não por excesso de opções, mas por falta.
Calma, não estou dizendo que o cinema e as plataformas de streaming estiveram livres de bombas na temporada. É que, por sorte, por faro ou por confiar em outros críticos, eu me desvio bastante delas (fugi, por exemplo, de The Last Days of American Crime e de A Última Coisa que Ele Queria, ambos na Netflix). Ou então consigo desarmá-las em menos de 15 minutos de filme e parto para outra aventura, ou drama, ou comédia...
Ainda assim, sofri alguns arranhões em 2020. A lista abaixo segue um único critério: são filmes que miravam alto, mas aplicaram golpes baixos. Deixei de fora produções com orçamento ou objetivo limitados (isso elimina qualquer comédia com Adam Sandler ou Will Ferrell, e salvou da lista títulos como o espanhol Origens Secretas e o argentino Muito Amor pra Dar). Só brigo com cachorro grande. Que estão apenas em ordem alfabética.
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Artemis Fowl e Ava
Dois filmes que, de tão ruins e/ou chatos, nem consegui terminar de ver. O primeiro, disponível no Disney Plus, é a adaptação de Kenneth Branagh para as aventuras literárias de um gênio do crime de 12 anos. No segundo, em cartaz na Netflix e dirigido por Tate Taylor, Jessica Chastain faz uma assassina profissional que, ao entrar numa crise de consciência, passa a ser um alvo. Colin Farrell tem a honra de integrar os dois elencos.
Convenção das Bruxas
A nova versão de um livro infantil do escocês Roald Dahl (o mesmo de A Fantástica Fábrica de Chocolate) é um filme ruim em mais de um sentido. Uma "liberdade artística" do diretor Robert Zemeckis em relação à obra original provocou merecida revolta de pessoas com deficiência. Estava em cartaz nos cinemas de Porto Alegre quando a pandemia obrigou, de novo, o fechamento das salas.
Dolittle
Em outra refilmagem de um clássico infantil, o do veterinário que consegue falar com os animais, Robert Downey Jr., o Homem de Ferro do universo cinematográfico Marvel, lidera uma espécie de versão felpuda dos Vingadores. Os bastidores de Dolittle prenunciavam o caro abacaxi. A um custo final de US$ 175 milhões, a produção já começou errando a mão: o estúdio Universal escalou Stephen Gaghan, um cineasta sem o menor traquejo para personagens digitais, gerados por efeitos visuais, nem para a comédia de aventura com foco no público infantil.
Assim, não foi surpresa que, após exibições-teste, a produtora tenha convocado outro diretor para refilmar um bocado de cenas — foram 21 dias de trabalho a cargo de Jonathan Liebesman, realizador de As Tartarugas Ninja (2014). O resultado foi um enjambre terrível entre o tom sombrio da versão de Gaghan — um protagonista paralisado pelo luto, uma tentativa de assassinato da rainha inglesa, um esquilo que jura vingança ao ser alvejado por um jovem e relutante caçador — e a correria típica dos filmes à la parque de diversões, as piadas sobre peido, bafo e outros odores, as lições de meia-tigela sobre amizade e união. Disponível em Apple TV, Now, Telecine, Google Play e YouTube.
A Festa de Formatura
Dizem que o inferno está cheio de boas intenções / Imaginem esse lugar também cheio de canções / Um musical sem número de dança / Que empolgue, nossa, isso cansa / Ryan Murphy, que criou American Horror Story, / Foi até a Broadway para nos trazer um porre / Dizem que o filme está cotado ao Oscar, acho exagero / A história é boa e até necessária, mas falta esmero / É verdade que o clima da pandemia favorece / Queremos uma obra que o coração aquece / Melhor ainda mostrando que, no amor, somos iguais / Brancos, negros, héteros e LGBT+ / Queremos dançar com a pessoa amada / Ter nossa sexualidade respeitada / Queremos apoio e paixão / Quem sabe flores de montão / Queremos o beijo que torna final feliz o pranto / Mas pra chegar lá precisava demorar tanto? Disponível na Netflix.
Invasão Zumbi: Península
Na sequência do bem-sucedido Invasão Zumbi (2016), o cineasta sul-coreano Yeon Sang-ho pesou a mão na ação e esqueceu de desenvolver os personagens. Investiu nos efeitos visuais e deixou de lado outras camadas de leitura. Em vez de empatia, provoca apatia, ainda que temperada por um pouco de susto e um pouco de asco. Estreou nos cinemas da Capital uma semana antes de serem fechados por causa da covid-19.
Power
Bacana na fotografia e em alguns duelos corpo a corpo, o filme dos diretores Henry Joost e Ariel Schulman (os mesmos do bem mais interessante Nerve: Um Jogo Sem Regras) trafega entre o clichê e a previsibilidade, com uma passadinha pela inverossimilhança e pela enrolação. Por exemplo: todos nós sabemos que os personagens encarnados por Jamie Foxx (um ex-militar), Dominique Fishback (uma estudante de Ensino Médio) e Joseph Gordon-Levitt (um policial) vão se aliar, então por que perder tempo fazendo o último caçar o primeiro? E Rodrigo Santoro, que faz o vilão, merecia melhor destino. Disponível na Netflix.
Rebecca, a Mulher Inesquecível
O currículo do cineasta inglês Ben Wheatley (de Kill List e No Topo do Poder) prometia uma abordagem mais sinistra, excêntrica, sarcástica e provocativa do clássico de 1940 que valeu a Alfred Hitchcock seu único Oscar de melhor filme. Mas, a despeito da esforçada atuação de Lily James e do belo trabalho de fotografia, direção de arte e figurinos, esta versão colorida do livro escrito por Daphne du Maurier (em um provável caso de plágio de uma autora brasileira) carece de choque e de crueza, de anarquia e anomalia. Não parece nem um filme de Hitchcock, por não usar as luvas do subtexto, nem um de Wheatley, por não querer sujar mais as mãos. É um filme sem personalidade, sem rosto, absolutamente passível de morrer afogado na nossa memória. Disponível na Netflix.
Tenet
Pelo passado do diretor (Amnésia, O Grande Truque, Batman: O Cavaleiro das Trevas, A Origem, Dunkirk...), pelo dinheiro gasto (US$ 200 milhões e mais US$ 100 milhões em marketing) e pela expectativa gerada (foi vendido como o marco da retomada de Hollywood no ano do coronavírus), o filme de Christopher Nolan revelou-se um grande tropeço. Em que pese o habitual impacto visual, o carisma dos atores John David Washington e Robert Pattinson e a excepcional trilha sonora de Ludwig Göransson, Tenet paga um preço alto por sua trama excessivamente confusa, que joga conceitos sobre física quântica e contra-ataques bitemporais sem nunca se aprofundar, e pelo parco desenvolvimento dos personagens (um calcanhar de Aquiles na carreira do cineasta). Ah, a coisa também está feia nas bilheterias: para dar lucro, tinha de arrecadar uns US$ 600 milhões, mas, desde a estreia, em 27 agosto, só conseguiu US$ 361 milhões. Ainda estava em exibição na Capital quando os cinemas suspenderam as atividades.
365 dni
Pode não ser uma superprodução nem contar com um elenco famoso, e tampouco ambiciona ser mais do que é, um thriller erótico à beira do pornô. Mas o polonês 365 dni entrou na lista porque foi um dos filmes da Netflix mais acessados em 2020 apesar de parecer uma obra do século passado. Com direção de Barbara Bialowa e Tomasz Mandes, a versão de um best-seller de Blanka Lipinska objetifica a mulher e romantiza o abuso sexual. O cardápio retrógrado e machista inclui sequestro, cárcere privado, ameaça de estupro e quase todo tipo de situação que caracteriza um relacionamento tóxico.