Ironicamente, o Cats de 2020 é um filme com ratos falantes: Convenção das Bruxas, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (19). É até pior do que a "catstrofe" da temporada passada, inofensiva a não ser para a reputação dos artistas e os cofres dos produtores. O novo Witches (título original) entrou três vezes na fila do pecado: além de ser, resumidamente, chato, retoma para seu público-alvo, o infantil, alguns estereótipos que já deviam estar soterrados, e é tímido demais na abordagem de um tema sério com os quais as crianças já estão familiarizadas.
Neste momento do texto, alguns de vocês já podem estar revirando os olhos: "Ah, é só um filme", "Para de ser politicamente correto", "Deixa a gente se divertir". Tudo bem. Mas também é minha função contar o que faz os meus olhos revirarem.
Cats, para quem teve a sorte ou o juízo de não ver, é a famigerada versão do homônimo musical de Andrew Lloyd Webber. Subiu no telhado desde seu lançamento, em dezembro passado, quando foi classificado como "a pior coisa que aconteceu aos gatos desde os cães", e exibiu erros graves no milionário trabalho de computação gráfica — como um figurante de capuz em meio a um bando de gatos antropomorfizados e a aparição das mãos humanas em cenas de Judi Dench e da comediante americana Rebel Wilson. O resultado não poderia ser muito diferente. No Framboesa de Ouro, a premiação de galhofa anunciada na véspera do Oscar, "ganhou" em seis categorias: pior filme, pior diretor (Tom Hooper), pior roteiro, pior ator coadjuvante (James Corden), pior atriz coadjuvante (Rebel Wilson) e pior combo (grupo) em cena.
Convenção das Bruxas guarda algumas semelhanças com Cats. Em vez de uma adaptação de um cultuado musical da Broadway — 18 anos em cartaz —, temos a nova versão de um filme cultuado por quem foi criança na década de 1990 (aliás, o original, baseado em livro do escritor galês Roald Dahl, de A Fantástica Fábrica de Chocolate, e assinado pelo inglês Nicolas Roeg, completou 30 anos em agosto).
Seu realizador é Robert Zemeckis, que recebeu, por Forrest Gump (1994), os Oscar de melhor filme e diretor — prêmios também conquistados por O Discurso do Rei (2010), de Tom Hooper.
Os dois filmes apostam muito nos efeitos visuais, mas aí há de se reconhecer que Convenção das Bruxas já largou em vantagem. É que Zemeckis tem ampla experiência no assunto, desde a trilogia De Volta para o Futuro (1985-1990) e a mistura de atores e personagens animados de Uma Cilada para Roger Rabbit (1988) até O Expresso Polar (2004), Beowulf (2007) e Os Fantasmas de Scrooge (2009), todos produzidos com a técnica da captura de movimento. Porém, não se percebe muita inovação em cena. Parece apenas uma evolução dos efeitos de A Morte lhe Cai Bem (1992), filme de Zemeckis vencedor do Oscar da categoria, e da aventura O Pequeno Stuart Little (1999).
Quando começa, até que Convenção das Bruxas ensaia uma interessante atualização, ainda que, paradoxalmente, jogando a trama para o passado. Estamos no Alabama dos Estados Unidos de 1968. É o ano em que, no pódio dos Jogos Olímpicos da Cidade do México, atletas americanos ergueram os punhos no gesto característico dos Panteras Negras, e é o Estado sulista onde, em 1955, Rosa Parks recusou-se a ceder seu lugar para uma pessoa branca.
No filme de Zemeckis, são as pessoas brancas que cedem seu lugar. Os personagens principais, o menino órfão Luke e sua avó — agora apenas chamada de vovó —, são interpretados por atores negros: Jahzir Bruno e Octavia Spencer, Oscar de melhor atriz coadjuvante por Histórias Cruzadas (2011). E quem narra é Chris Rock, que milita na praia do humor.
Parece que racismo e empoderamento da população afro-americana serão temas importantes, mas acabam esquecidos no instante em que Luke e a vovó se hospedam em um luxuoso hotel à beira-mar, onde pretendem ficar longe do alcance de uma bruxa. Acontece que esse mesmo hotel vai sediar, sem que o gerente (Stanley Tucci, totalmente subaproveitado) saiba, a tal convenção das bruxas do título. Um exemplo de como as questões sociais são abandonadas: a vovó disse que as bruxas atacam crianças pobres, mas a primeira vítima no hotel é o filho de um aristocrático casal inglês, o guloso Bruno, o primeiro a ser transformado em um rato falante— e ainda guloso, claro.
Se Stanley Tucci tomou uma overdose de chá de camomila, Anne Hathaway, no papel da Grande Bruxa Rainha, exagerou no energético. Investiu em um sotaque carregadíssimo e em caretas que a computação gráfica amplia. Mas o principal problema da personagem não é culpa da atriz.
Robert Zemeckis tomou liberdades artísticas em relação à obra de Roald Dahl, porém, não mudou uma característica das bruxas que, hoje, já não cai bem: elas são todas carecas, como se isso fosse sinal de malvadeza (as mulheres que enfrentam o câncer estão aí para discordar).
Para piorar, o diretor fez uma adição que gerou um merecido puxão de orelha em Zemeckis e na Warner, a produtora: suas bruxas têm malformações nos pés e nas mãos. Ou seja, em pleno 2020, Convenção das Bruxas associa, diante do olhar infantil, pessoas com deficiência a personagens malignos.
Vice-presidente de comunicações da ONG RespectAbillity, Lauren Appelbaum criticou: "A decisão de fazer essa bruxa parecer mais assustadora por ter uma diferença de membros — o que não era uma parte original da trama — tem consequências na vida real. Infelizmente, essa representação em Convenção das Bruxas ensina às crianças que as diferenças de membros são horríveis ou algo de que devemos ter medo".
Renomados atletas paraolímpicos se manifestaram usando a hashtag NotAWitch (não uma bruxa), criada pelo Comitê Paraolímpico Internacional (IPC). A nadadora inglesa Claire Cashmore, dona de um ouro, três pratas e quatro bronzes em quatro participações em Jogos, publicou no Instagram: "Queremos que deficiências sejam naturalizadas e que sejam representadas de uma maneira positiva, em vez de serem associadas com um ser amedrontador". Nos Estados Unidos, outra medalhista da natação, Amy Marren, escreveu no Twitter que "não é a diferença que nos define". No Brasil, em seu blog no UOL, Clodoaldo Silva, que trouxe das piscinas paraolímpicas seis ouros, seis pratas e dois bronzes, fez coro às queixas e acrescentou: "Antigamente, a gente se escondia em casa. Hoje, ainda bem que podemos reclamar e colocar nossos argumentos. Hoje, a gente bate de frente".
Anne Hathaway pediu desculpas, e a Warner também: "Ficamos profundamente tristes ao saber que nossa representação dos personagens de ficção poderia incomodar as pessoas com deficiência e lamentamos qualquer ofensa causada. Ao adaptar a história original, trabalhamos com designers e artistas para chegar a uma nova interpretação das garras felinas descritas no livro. Nunca houve a intenção de que espectadores sentissem que as criaturas fantásticas e não humanas deveriam representá-los. Este filme é sobre o poder da bondade e da amizade. Esperamos que famílias e crianças possam aproveitá-lo".
Poderia ter aproveitado o embalo e pedido desculpas pelo filme em si. Olhando em retrospecto, prefiro Cats, com todas as suas deficiências.