Há pelo menos três motivos que explicam a escolha inédita de um documentário, Babenco — Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, de Bárbara Paz, para representar o Brasil na briga por uma vaga entre os indicados ao Oscar 2021 de melhor filme internacional.
O motivo mais visível é a ligação do biografado com a própria Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Argentino naturalizado brasileiro, Héctor Babenco (1946-2016) foi o realizador de O Beijo da Mulher-Aranha (1985), que concorreu aos Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado (baseado em novela do escritor Manuel Puig) e valeu a William Hurt a estatueta de ator.
Essa conexão é ressaltada no documentário, que reproduz o momento em que, na cerimônia de premiação, a atriz Barbra Streisand anuncia os cinco indicados: Babenco, então com 39 anos, ombreia com os gigantes Akira Kurosawa, John Huston e Sydney Pollack. Sua obra seguinte, Ironweed (1987), também disputou Oscar — Jack Nicholson e Meryl Streep receberam indicações a melhor ator e a melhor atriz.
O segundo motivo que justifica a escolha da comissão formada pela Academia Brasileira de Cinema (ABC) é mais subjetivo, embora bem simples: trata-se de um baita filme este que foi eleito o melhor documentário no Festival de Veneza em 2019, além de ser premiado pela crítica independente, e que entra em cartaz nos cinemas brasileiros no dia 26 de novembro. Em sua estreia como diretora de longas-metragens, a atriz gaúcha Bárbara Paz, viúva de Babenco, fez uma inventiva e poética homenagem ao cineasta que morreu aos 70 anos, de parada cardiorrespiratória, e que havia enfrentado durante oito anos um câncer linfático. Um grande acerto foi equalizar, em preto e branco, a fotografia tanto das sequências documentais quanto dos trechos de filmes do diretor, todos originalmente coloridos, de modo que temos a impressão de estar vendo uma obra orgânica. Nesse sentido, é exemplar a colagem de cenas em que personagens de Babenco, como o protagonista de Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981), o Molina de O Beijo da Mulher-Aranha e um dos presidiários de Carandiru (2003), aparecem correndo. É uma corrida pela sobrevivência, como a empreendida pelo cineasta.
O documentário começou a ser produzido quando Babenco percebeu que não teria mais muito tempo de vida, então, está repleto de memórias e reflexões, medos e anseios. Flagrado na intimidade do lar ou numa intimidante cama de hospital, onde sua voz por vezes não acompanha a velocidade do pensamento, ele literalmente se desnuda, como prenuncia uma das primeiras cenas, em que, sem camisa, explica à esposa o jeito adequado de usar uma câmera para conseguir focar tanto o personagem quanto o background, o fundo, o todo.
O todo. Isso é impossível de capturar, o cineasta também ensina a Bárbara, brincando que ela não pode fazer de "A Morte de Héctor" uma saga interminável e retomando, inconscientemente, o que aprendera na adolescência em Mar del Plata, sua cidade natal, ao ganhar de presente sua primeira lente:
— Serve para enquadrar. E ver só o que te interessa ver.
Mas Bárbara Paz, em apenas 73 minutos, conseguiu dar conta de retratar a carreira de 40 anos e 10 longas de ficção de Babenco, desde O Rei da Noite (1975) até Meu Amigo Hindu (2016). Aliás, são dois filmes mais próximos do que aparentam ser, e que formam uma espécie de trilogia da memória e da morte com este Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou. No primeiro, Tertuliano (interpretado por Paulo José) narra sua própria história, da infância à velhice. No segundo, o ator americano Willem Dafoe encarna um personagem que representa o próprio Babenco — um cineasta que descobre um câncer em estado terminal e faz à Morte (Selton Mello) um último pedido: realizar mais um filme.
— A vontade de fazer cinema— declara Babenco em uma passagem do documentário — é também a vontade de estar vivo. Estar filmando é estar vivendo. Não sei o que vinha primeiro, o filmar ou o estar vivo.
E aí chegamos ao terceiro motivo. De maneira não intencional, pois não se podia prever a pandemia, Bárbara Paz fez um filme que dialoga com o momento que estamos vivendo, o que pode aumentar as chances de emplacar a indicação ao Oscar.
O coronavírus atingiu em cheio o cinema, que é uma arte e uma indústria essencialmente coletiva. Não só na produção, mas também na fruição—e Babenco sabia fazer dos seus filmes uma experiência coletiva, vide os sucessos de público de Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), 11ª maior bilheteria nacional, com 5,4 milhões de espectadores, Carandiru (4,7 milhões), Pixote (2,5 milhões) e O Beijo da Mulher-Aranha (1,7 milhão).
Para ele, o cinema era um refúgio, uma tela onde podia refletir sobre seus problemas identitários — dizia que "ser judeu é não ser nada, é não pertencer, não ter nascido num lugar, é ouvir seus pais falarem uma língua, o iídiche, que não se escuta na rua" (mais tarde, em uma entrevista para a TV, Babenco, entre a ironia e o lamento, afirma que os argentinos o consideravam brasileiro, e os brasileiros o consideravam argentino). O cinema era um espaço escuro onde podia encontrar, nas suas palavras, proteção e distração.
Hoje, quando distração cairia bem para muitos de nós, os aflitos ou os enlutados, uma sala de cinema pode não ser exatamente um ambiente de proteção. Mas os filmes continuam vivos, como a obra de Héctor Babenco.
O documentário que o Brasil escolheu para tentar uma vaga no Oscar é um filme sobre o amor de uma mulher por um homem, sobre o amor de um cineasta pela vida e sobre o amor que nós temos pelo cinema. Este território mágico onde, como os filmes de Babenco mostraram, nossos piores pesadelos podem ser reencenados, mas, também, a dor pode ser transmutada em fantasia. Um lugar onde, como visto nas últimas cenas do filme de Bárbara Paz, podem se fundir imagem e som, memória e imaginação, o choro pela saudade e o riso pelas lembranças boas, o Libertango de Astor Piazzolla e um quarto de hotel em Hong Kong, a morte e a permanência.