A gente fala tão bem dos filmes argentinos, mesmo quando não são estrelados pelo Ricardo Darín – tanto é que tem três na minha lista dos 20 melhores de 2020, nenhum deles com o astro de O Filho da Noiva (2001) –, que, quando aparece um ruim, convém avisar o espectador. É caso de Muito Amor pra Dar (Corazón Loco, 2020), de Marcos Carnevale, que estreou há algumas semanas na Netflix.
Apertei o play por causa do diretor, o mesmo de Elsa e Fred (2005) – aquela comédia romântica sobre a terceira idade que se tornou um fenômeno de público e foi até refilmada por Hollywood – e de Anita (2009), drama sobre uma jovem com Down que se vê no meio de um turbilhão quando ocorre o atentado à Associação Mutual Israelita Argentina, em 1994, em Buenos Aires.
A sinopse apresentada na plataforma era suficientemente curiosa: Fernando (interpretado pelo cinquentão Adrián Suar, que assina o roteiro com Carnevale) é um homem tão dedicado à família que tem até duas. Mas um acidente coloca todos em rota de colisão.
E o filme começa bem, desde que, claro, a gente veja com os óculos da ficção científica essa comédia romântica sobre um médico traumatologista que, na era das redes sociais, em que tudo o que fazemos deixa pegadas digitais, e diante da eterna crise econômica argentina, consegue manter por tanto tempo uma vida dupla. De segunda a quinta, Fernando está em Mar del Plata – lindamente filmada, vale dizer –, onde é marido de Paula (Gabriela Toscano) e pai de duas garotas adolescentes, frutos de um casamento prestes a completar 19 anos. De quinta a domingo, Buenos Aires, a 400 e poucos quilômetros de distância, passa a ser seu lar, na companhia de Vera (Soledad Villamil, do oscarizado O Segredo dos seus Olhos), mãe de um gurizinho nascido de uma união que já dura nove anos.
Fernando não se vê como um canalha, mas como alguém que, como diz o título brasileiro, tem muito amor para dar. Um colega seu no hospital de Buenos Aires, o divertidamente angustiado Gonzalo (Alan Sabbagh, de O Décimo Homem), é quem faz algumas perguntas óbvias sobre o custo financeiro dessa empreitada – os dois carros diferentes, o apartamento extra na capital argentina, o Imposto de Renda – e até que ensaia o debate ético sobre ter duas famílias. Mas este não é um drama dinamarquês.
Como comédia de erros, Muito Amor pra Dar chega a funcionar na primeira meia hora de seus 148 minutos, quando Carnevale, por vezes, filma como cenas de ação as peripécias do protagonista para enganar as duas esposas. Mas, ao comprar o ponto de vista de Fernando, o diretor acaba por endossar não apenas o machismo dele, mas também as atitudes de uma elite que se coloca acima dos outros – vide o tratamento dispensado pelo médico a um enfermeiro.
As personagens femininas, coitadas, reforçam o anacronismo de um filme que desde o começo exige muita suspensão da descrença – é sério que só depois de nove anos surge uma foto que pode gerar um tiquinho de desconfiança? Ou elas são tontas, passíveis de serem manipuladas ou humilhadas, ou são loucas, capazes de pensar em uma solução violenta para o inevitável momento em que a farsa de Fernando cai por terra. Os requintes de crueldade do plano arquitetado fazem-nas soarem como as vilãs da história, e o salafrário, como a vítima. A essa altura, as risadas que Muito Amor pra Dar provocara em seu início já parecem, também, coisas do século passado.