O atônito sujeito da foto é o simpático personagem principal de um estranho e extraordinário documentário: As Mortes de Dick Johnson (Dick Johnson Is Dead, 2020), em cartaz na Netflix.
Basicamente, a filha dele, a cineasta Kirsten Johnson, resolveu homenagear o pai em vida, antes que a morte levasse seu corpo ou, no mínimo, sua memória ficasse gravemente comprometida. O viúvo Dick, aos 80 e tantos anos, começa a apresentar os sintomas do Alzheimer, mesma doença que acabou por, na prática, lhe separar eternamente de sua amada esposa. É hora de se aposentar do trabalho como psiquiatra, de parar de dirigir, de se mudar da casa grande em Seattle para o outro lado do Estados Unidos, para morar com a filha e os netos num pequeno apartamento de Nova York.
Kirsten, 55 anos, a filha, foi diretora de fotografia em documentários premiados, como O Juramento (2010), sobre dois homens cujas vidas se cruzam com o de Osama bin Laden, e Cidadãoquatro (2014), sobre Edward Snowden, o analista de sistemas que tornou públicos detalhes de vários programas que constituem o sistema norte-americano de vigilância global. Ambos foram dirigidos por Laura Poitras, e este último recebeu o Oscar da categoria.
Em 2016, ela assinou como diretora o multipremiado Cameraperson, constituído de imagens captadas por Kirsten ao longo dos seus 25 anos de carreira, nos países que ela visitou, como Afeganistão, Bósnia, Iêmen e Libéria, além do campo de prisioneiros de Guantánamo e da conflagrada cidade de Darfur, no Sudão. O documentário foi elogiado tanto por suas reflexões técnicas quanto por suas reflexões éticas. Sua família já aparecia ali, assim como o tema da memória.
Em As Mortes de Dick Johnson, a homenagem ao pai é também uma homenagem ao ofício de Kirsten, o do cinema, capaz de eternizar as coisas e as pessoas, e capaz também de matar sem matar. Você entenderá ao assistir a este filme feito com muito amor e humor.
Sim, humor. Eis um curioso contraponto, digamos, a outro documentário fascinante que chegou recentemente à Netflix, Contornando a Morte (2018). Se neste último uma família tailandesa parece não saber lidar com a perda e o luto pela filha de dois anos, no título americano os Johnson encontraram uma maneira própria e peculiar de se conciliar com o inevitável.