Crítico do portal Papo de Cinema (papodecinema.com.br) e integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE).
Em março de 2012, Keith Alexander apresentou-se sob juramento ao Congresso norte-americano. Diretor da NSA (Agência de Segurança Nacional), o general se viu obrigado a encarar uma suspeita antiga. Perguntado pelo democrata Hank Johnson se a NSA colhia dados do povo americano de forma indiscriminada, o chefe do comando cibernético desde o governo Bush respondeu com uma negativa curta e incisiva.
O "não" repercutiu como tentativa de acalmar a desconfiança dos americanos em relação às decisões tomadas pelo país a fim de enfrentar os desdobramentos da última década. Após os ataques de 11 de setembro, a resposta interna do governo de George Bush foi a expansão da rede de vigilância virtual. A sensação de insegurança fez com que o debate cedesse lugar à urgência, pondo em prática medidas executadas de forma irrestrita, movidas pelo nacionalismo e justificadas em nome da segurança. O resultado alarmante dessas políticas tornou-se evidente em 2005, quando o New York Times revelou que Bush autorizara a NSA a espionar a comunicação dos norte-americanos sem a necessidade de mandado prévio. Durante quatro anos, milhões de cidadãos tiveram os dados interceptados.
Eleito como resposta às posições truculentas do antecessor, Barack Obama desmentiu a ilegalidade dos atos da NSA. Em março de 2013, o mais alto funcionário do governo para assuntos de defesa nacional, James Clapper, fez coro ao presidente quando questionado no Congresso sobre a violação de privacidade dos Estados Unidos. Tradicionalmente eficiente, o jogo de palavras não suporia que, três meses depois, Edward Snowden, um analista de infraestruturas de 29 anos, com carreira na CIA e na Agência de Segurança, trouxesse a público documentos secretos provando os abusos da NSA e dos parceiros dos Cinco Olhos (Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e EUA). Em poucos dias, ficou evidente que o governo não tergiversava sobre a segurança da população, mas mentia descarada e reiteradamente.
Considerado o maior escândalo dos bastidores do governo americano desde o Watergate, o vazamento de Snowden se limitaria a uma série de reportagens nos principais jornais do mundo e a um vídeo no Youtube caso não contasse com o documentário Citizenfour. O registro da norte-americana Laura Poitras compõe uma trilogia iniciada com My Country, My Country (2006), sobre o povo afegão durante a invasão americana, e The Oath (2010), sobre dois homens a serviço de Osama Bin Laden. Espécie de ombudsman da política do seu país, Laura mudou-se para Berlim depois de ser detida sistematicamente ao desembarcar nos EUA.
Citizenfour, codinome de Snowden, se articula em dois movimentos, um geral e outro específico. O primeiro contextualiza o debate sobre a segurança virtual e as evasivas dos Estados Unidos. O segundo cobre com intensidade os 10 dias em que a diretora e o jornalista Glenn Greenwald estiveram com Snowden em um quarto de hotel em Hong Kong. O enclausuramento, a ansiedade para confirmar os documentos e a tensão de perceber frente a você um jovem talentoso prestes a abrir mão do futuro em prol de um ideal, renderam ao filme o Oscar de melhor documentário. As agruras e os louros das imagens captadas em um misto de cálculo e acaso constroem uma linha de tempo compreensível e densa. Quanto mais entendermos o que se passa, menor é a chance de considerarmos Snowden um traidor. Isso, sim, um crime que a parcialidade da direção se ocupa em desconsiderar.
Para além do debate sobre os limites entre direitos civis e segurança, o filme se posiciona a respeito da intimidade, tanto ao defender a dos cidadãos, quanto a de compreender a de Snowden. Toda vez que a câmera o enquadra, o plano fechado (por motivos tanto de atmosfera quanto de falta de espaço) dimensiona perguntas incessantes. Diante do rosto de um cidadão comum, o "cidadão quatro", queremos descobrir quem é aquele garoto, quais as suas motivações, de onde vem o seu discurso. A juventude é uma máquina de mártires. Mas nada como o herói de Citizenfour. A fala pausada não arde como a dos revolucionários e a ideologia proferida não condena o progresso. Assim como Cassandra, Snowden viu o futuro, frustrou-se com o rumo que ajudou a construir e voltou para nos alertar. No pedido de desculpas, entregou-nos tudo, inclusive paz e liberdade.
Menos como coroamento da inventividade estilística ou da sofisticação técnica - pelo contrário, Citizenfour é um filme duro, próximo ao naturalismo do cinéma vérité -, o prêmio na categoria melhor documentário concedido na última cerimônia do Oscar pela Academia de Hollywood é um reconhecimento pelo papel histórico do trabalho de Poitras. Através da lente de Laura, a História pôde ser retida com precisão poucas vezes vista. Produzido por Steven Soderbergh (Traffic, 2000), o filme ingressa no seleto grupo de documentários que marcaram época pela contundência e pela coragem, como Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov, 1929), No Ano do Porco (Emile de Antonio, 1968) e A Tênue Linha da Morte (Errol Morris, 1988).
Cidadãoquatro
O documentário, já com título em português, tem exibição marcada para este fim de semana no Rio e em São Paulo na programação do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade.