Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940) foi a única obra de Alfred Hitchcock premiada com o Oscar de melhor filme. A nova adaptação da novela escrita por Daphne du Maurier (1907-1989), em cartaz na Netflix desde quarta-feira (21), ficou alguns dias como o título mais acessado na plataforma de streaming.
Mas a estatueta dourada não necessariamente faz daquele o grande trabalho do cineasta inglês — na minha escala, estão na frente, entre outros, Um Corpo que Cai (1958), Janela Indiscreta (1954), À Sombra de uma Dúvida (1943) e Pacto Sinistro (1951) —, nem o Rebecca de 2020 é toda essa Coca-Cola.
Na verdade, seu maior mérito é fazer lembrar do Rebecca de Hitchcock, que, de fato, tem uma série de virtudes — não por acaso, sua estreia em Hollywood ganhou também o Oscar de fotografia em preto e branco e concorreu aos prêmios de diretor, ator (Laurence Olivier), atriz (Joan Fontaine), atriz coadjuvante (Judith Anderson), roteiro, edição, direção de arte, música original e efeitos especiais. A trama, ambientada nos anos 1930, permite ao mestre do suspense lidar com temas, personagens e situações que, dali em diante, caracterizariam sua obra. Conta a história de uma jovem humilde que, à la Cinderela, casa-se com um nobre inglês, Maxim de Winter, mas logo descobre que ele é atormentado por um fantasma: Rebecca, a esposa morta. Essa mulher é inesquecível também para a governanta, a senhora Danvers, que submete a tortura psicológica a segunda Sra. De Winter — seu prenome nunca é mencionado, como se só existisse para ser a substituta, nunca à altura, da primeira Sra. De Winter.
Nesse tabuleiro, Hitchcock joga com repressão sexual, personagens masculinos ambíguos e sua célebre misoginia — à protagonista é negada a identidade, a Sra. Danvers é negado o sexo, a Rebecca é negada a própria vida.
Contando praticamente a mesma história, o novo Rebecca, a Mulher Inesquecível, a exemplo da personagem principal, também acaba assombrado pelo espectro do primeiro. Lily James — por coincidência ou não, a Cinderela de 2015 — faz o papel que era de Joan Fontaine. Seu desempenho é cativante, acomodando — e libertando, quando necessário — sentimentos distintos, como doçura e pulsão sexual, desamparo e determinação. Já Armie Hammer, de Me Chame pelo seu Nome (2017), foi uma escolha controvertida para substituir Laurence Olivier. Com 1m96cm (contra os 1m78cm de seu antecessor), ele parece, como alguém já disse, sólido demais, imune ao sofrimento. As expressões de seu rosto tampouco são ambíguas, como as de Olivier. Isso fará falta mais adiante na trama, depois que o conto de fadas vivido pelos dois personagens na ensolarada Monte Carlo der lugar às sombras da mansão Manderley, na Inglaterra.
Outra diferença brutal em relação ao filme de Hitchcock é que, em vez de uma elegante fotografia em preto e branco, agora temos uma fotografia a cores — igualmente elegante. O trabalho de Laurie Rose valoriza a direção de arte, os cenários e, sobretudo (sem trocadilho), os figurinos. É um desfile incessante o protagonizado pela personagem de Lily James — acho que nunca repete uma roupa.
Mas quem assume o centro do palco em Manderley é Kristin Scott Thomas, como a governanta Danvers. Sua frieza erótica, seu rancor ostensivo e as arapucas que arma para a segunda Sra. De Winter evitam que o filme despenque para o tédio enquanto vão surgindo pistas do mistério que envolve a morte de Rebecca. Porém, esse é um tipo de personagem com o qual já estamos muito habituados (no mínimo, desde o Rebecca de 1940...). Portanto, por mais que a atriz indicada ao Oscar por O Paciente Inglês (1996) e ao Globo de Ouro por Há Tanto Tempo que Te Amo (2008) se esforce, não é suficiente para tornar esta Rebecca inesquecível.
O leitor atento deve ter percebido que, até agora, não mencionei o nome do diretor do Rebecca da Netflix. Foi uma analogia com a segunda Sra. De Winter: o inglês Ben Wheatley, 48 anos, tem de encarar o peso da comparação com ninguém menos do que Alfred Hitchcock (1899-1980). O currículo do cineasta prometia uma abordagem mais sinistra, excêntrica, sarcástica e provocativa. São dele títulos como Kill List (2011), Turistas (2012) e No Topo do Poder (2013). Este último, disponível na Netflix, até guarda alguma semelhança com Rebecca: o médico encarnado por Tom Hiddleston que se muda para um condomínio de elite na Londres dos anos 1970 tem um quê da segunda Sra. De Winter no seu olhar estrangeiro para com Manderley e seus habitantes, e os dois endereços não tardam a se transformar no inferno referido, em ambas as histórias, pela narração em off do protagonista.
Mas enquanto No Topo do Poder pode causar náusea, Rebecca só causa enfaro. Carece de choque e de crueza, de anarquia e anomalia. Não parece nem um filme de Alfred Hitchcock, por não usar as luvas do subtexto, nem um de Ben Wheatley, por não querer sujar mais as mãos. É um filme sem personalidade, sem rosto, absolutamente passível de morrer afogado na nossa memória.