Eu acho o Oscar o maior barato, mas a estreia de O Discurso do Rei (2010) no catálogo do Amazon Prime Video me faz lembrar que, às vezes, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood erra a mão ao entregar a estatueta de melhor filme.
A história da premiação está cheia de escolhas duvidosas. Há vencedores que caíram no esquecimento e derrotados que se tornaram clássicos. Uma injustiça histórica foi o triunfo, em 1945, de O Bom Pastor, de Leo McCarey (que no total ganhou sete troféus), sobre Pacto de Sangue, de Billy Wilder (que concorreu em sete categorias mas não levou nada). Este último é reverenciado até hoje por ter praticamente estabelecido a cartilha do cinema noir. Do primeiro, quem se lembra?
Acontece que o Oscar não é decidido em um júri, que conversa sobre os filmes assistidos, mas em uma votação individual — que pode ou não ser influenciada pela opinião do público e da crítica, por relações afetivas (afinal, os indicados costumam ser colegas de trabalho dos integrantes da Academia) e por lobby de produtores como Harvey Weinstein (nos tempos em que ele não estava preso por crimes sexuais). O que impera, no entanto, é o chamado gosto médio.
E, se é médio, significa que os filmes mais polarizadores acabam prejudicados. Ou seja, raramente a ousadia — temática, estética, política, sexual etc — vai sair premiada. Ganha, normalmente, o mais palatável.
Se na hora H o convencional pode persuadir os votantes da Academia, aí está mais um motivo para celebrar as histórias vitórias de Moonlight (2016) e Parasita (2019). Um foi o primeiro filme LGBT+ a receber o prêmio máximo, e o outro, a primeira obra não falada em inglês.
Pena que, quase entre uma premiação e a outra, o Oscar também elegeu Green Book (2018). Era para ser a história de um pianista de jazz, Don Shirley, que enfrentou o racismo em uma turnê pelo sul dos Estados Unidos, em 1962. Mas, pelas mãos do diretor Peter Farrelly, tornou-se a história de um homem branco (motorista e segurança do artista) que ensina quase tudo ao negro. Não à toa, Spike Lee, que tinha seu Infiltrado na Klan concorrendo, ficou fulo da vida. Não à toa, Mahershala Ali, que ganhou o Oscar de ator coadjuvante no papel de Shirley, pediu desculpas à família do músico. Não à toa, em 2020 a Academia de Hollywood incluiu 819 novos integrantes, sendo 36% oriundos de comunidades étnicas "sub-representadas", segundo a própria entidade, como uma forma de, na hora de escolher indicados e vencedores, aumentar a representatividade e diminuir o racismo estrutural.
O Discurso do Rei não chega a ser um filme nocivo, mas é um crime que tenha falado mais alto do que seus nove competidores na cerimônia de 2011. Todos, absolutamente todos, são filmes mais atraentes, mais desafiadores, mais criativos, mais pungentes. Melhores.
A Academia refestelou-se em uma zona de conforto ao laurear O Discurso do Rei com os Oscar de melhor filme, diretor (Tom Hooper, que mais tarde assinaria o "catstrófico" Cats), ator (Colin Firth) e roteiro original: é uma história de superação pessoal, ambientada no seio da família real, temperada pela ameaça de Hitler e protagonizada por talentos britânicos. Ah, e não se pode desprezar a ostensiva campanha comandada por Harvey Weinstein, que já tinha nos currículos os oscarizados O Paciente Inglês (1996), Shakespeare Apaixonado (1998) e Chicago (2002) — aliás, estes dois últimos também conseguiram derrotar títulos mais robustos e marcantes: Além da Linha Vermelha, O Resgate do Soldado Ryan e A Vida É Bela, no primeiro caso, O Pianista, As Horas e Gangues de Nova York, no segundo.
Não há em O Discurso do Rei a inventividade de A Origem (de Christopher Nolan), os riscos assumidos por Cisne Negro (de Darren Aronofsky) e a coesão narrativa de A Rede Social (de David Fincher), para citar três dos rivais no Oscar. Não há o frescor de Minhas Mães e Meu Pai — em que a diretora Lisa Cholodenko examina, em tom de comédia dramática, as dinâmicas familiares contemporâneas —, nem a personalidade de Bravura Indômita, o faroeste refilmado pelos irmãos Joel e Ethan Coen com uma clave mais melancólica e rude do que a primeira versão, de 1969.
O elenco está bem dirigido em O Discurso do Rei? Bem, com Colin Firth, Geoffrey Rush (indicado ao Oscar de ator coadjuvante), Helena Bonham Carter (que concorreu como atriz coadjuvante), Guy Pearce, Michael Gambon e Timothy Spall no time, você só precisa se esforçar para não errar.
Falando em atores: a despeito de mais uma sólida atuação de Firth, seu personagem não me provocou a empatia necessária em uma história de superação pessoal. Aliás, um problema para um filme sobre o rei George VI (1895-1952) é que a gente fica muito mais interessado na história de seu irmão mais velho, Edward VIII, que seria simpatizante do nazismo e que abdicou do trono para se casar com uma plebeia americana e divorciada.
Voltando à empatia: sim, George é um canhoto que foi forçado a ser destro, ele era beliscado pela babá e ele era ridicularizado por ser gago. Mas convém lembrar que ele era o filho do rei! Senti mais drama nos outros concorrentes ao Oscar de melhor filme: a bailarina reprimida pela mãe e obcecada pela perfeição, em Cisne Negro; a garota que precisa encontrar o pai (ou pelo menos os ossos do pai) para não perder a casa em que vive com a mãe doente e os dois irmãos pequenos, em Inverno da Alma; o operário aspirante a boxeador que tem como treinador o irmão viciado em crack e como empresária a mãe sem noção, em O Vencedor; o montanhista que acabou preso em uma fenda profunda e estreita nos cânions do Estado de Utah, com a mão direita e o pulso emparedados por uma rocha de quase meia tonelada, em 127 Horas.
Até os brinquedos desprezados de Toy Story 3 comovem mais do que o rei George VI.