Aos 50 anos, o pernambucano Kleber Mendonça Filho é um dos principais cineastas brasileiros da atualidade. Com os filmes O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), o diretor se consolidou ao trabalhar o realismo social e valores afetivos da memória. Seu novo trabalho (assinado com Juliano Dornelles), Bacurau, estreou nesta última quinta-feira (29). Em maio, o longa foi exibido no Festival de Cannes, onde ganhou o Prêmio do Júri.
Antes de se firmar como cineasta, Kleber atuou anos como crítico de cinema, tanto que seu primeiro documentário, intitulado Crítico (2008), discute esse papel e sua relação com a indústria cinematográfica. O cineasta conversou com a reportagem de GaúchaZH durante o Festival de Cinema de Gramado, que exibiu Bacurau pela primeira vez no Brasil.
A consagração em Cannes e a boa recepção para Bacurau no exterior vieram ao mesmo tempo em que, no Brasil, o governo Bolsonaro passou a questionar e alterar mecanismos de fomento e a criticar a atuação da Ancine. Como você observa esses movimentos?
Eu não consigo entender nem aceitar como um governo pode tomar uma decisão de acabar com uma cadeia produtiva como a do audiovisual. Essa é a profissão que eu escolhi, assim como milhares de brasileiros escolheram. Não consigo entender como é possível pensar estrategicamente. É preciso entender que essas coisas que o governo fala machucam os trabalhadores. Tenho certeza de que estamos passando por um momento de desinformação do governo. Aos poucos, esse governo vai entender que não faz sentido acabar, conscientemente, com uma área de trabalho de milhares de brasileiros. Em primeiro lugar, o governo precisa coletar mais informações sobre a indústria do audiovisual no Brasil. Essa área é equivalente à indústria naval ou farmacêutica. É parte da economia do Brasil, e estamos falando de brasileiros que colocam comida na mesa a partir desse trabalho. O governo estaria atacando uma área que é estratégica para o Brasil. Toda a vez que eu e o Juliano viajamos com o Bacurau, nós somos, de uma certa forma, diplomatas da cultura brasileira por meio de uma um produto artístico brasileiro. Esse filme impactou com trabalho cerca de 800 pessoas de maneira direta ou indireta. Em relação a filtros (na escolha de projetos que receberiam recursos públicos), isso não deveria nem ser discutido. Essa discussão já foi feita nos anos 1980 com a Constituição de 1988. Não existe censura no Brasil. Não faz o menor sentido um governo trazer a ideia de uma censura, pois ela não faz parte do vocabulário da cidadania do Brasil.
Nos últimos tempos, alguns grupos têm demonstrado hostilidade aos artistas no Brasil. E também criticam as leis de incentivo. Como você percebe esse fenômeno?
Esse fenômeno também aconteceu na Alemanha nos anos 1930 e na Europa nos anos 1940. Acho que mais uma vez é uma questão de falta de informação. É preciso se informar sobre o que significa o trabalho com a cultura e como isso funciona mecanicamente dentro de uma ideia de incentivo e apoio governamental à expressão artística. Tem um exemplo muito bom que simplesmente cala a boca dessas pessoas: Transformers – A Era da Extinção, do Michael Bay, recebeu cerca de US$ 20 milhões em incentivos fiscais de Detroit para ser feito lá. Não é uma coisa exclusiva da cultura brasileira, acontece nos EUA, no Canadá, na França, na Romênia, na Austrália, na Nova Zelândia.
Bacurau é um filme político? Em que medida?
Antigamente, os filmes políticos se passavam em prédios do governo, e eram sobre governadores, deputados ou presidentes. Bacurau é um filme sobre o mundo. Quando se faz um filme sobre o mundo e você é honesto na forma como você mostra o mundo, inevitavelmente, você será chamado de político. Não tenho nenhum problema que meus filmes sejam apontados como políticos. Aquarius, por exemplo, era um filme que se passava dentro de um apartamento e em suas redondezas em uma praia. Era um filme político pelo fato de que a personagem dizia "não" quando todo mundo esperava que ela dissesse "sim". Isso se torna um ato político. Bacurau é um filme sobre o Nordeste, sobre o Brasil, sobre o mundo. Quando você faz um filme com muito coração sobre nosso país, você inevitavelmente fará um filme político. Quem melhor pode responder essa pergunta é o público.
Antigamente, os filmes políticos se passavam em prédios do governo, e eram sobre governadores, deputados ou presidentes. Aquarius, por exemplo, era um filme que se passava dentro de um apartamento e em suas redondezas em uma praia. Era um filme político pelo fato de que a personagem dizia “não” quando todo mundo esperava que ela dissesse “sim”. Isso se torna um ato político.
KLEBER MENDONÇA FILHO
De que maneira o Brasil cabe em Bacurau?
O Brasil foi o grande inspirador de Bacurau. Quando estávamos escrevendo o roteiro, nós não nos isolamos das mídias sociais. Estávamos conectados o tempo todo, pois sentíamos uma energia. Estávamos captando informações. Marcadores de vibe. O filme é extremamente honesto com a ideia de Nordeste. E da relação do Nordeste com o Brasil. E do Brasil com a América Latina, com o mundo. Ao mesmo tempo, é um filme que entende que a história se repete. Tem muita gente que diz que a história se repete como farsa. Nunca acho graça quando dizem que a história se repete. Acho triste. É como se ninguém tivesse entendido nada... Pfff! Como se usassem aquela caneta do filme Homens de Preto, que apaga a memória. Bacurau é um filme sobre o Brasil: como o país pode ser lindo e como pode ser feio também.
No Facebook, você fala bastante sobre salas de cinema que você visitava em sua juventude no Recife. Como se construiu sua relação com o cinema?
Tive a sorte de ser criança nos anos 1970 e adolescente nos anos 1980. Eu tinha uma queda natural pelo cinema, e minha mãe sempre estimulou isso. Aprendi a ver os grandes filmes em salas construídas em décadas anteriores e que estavam ainda em pleno vapor, sendo utilizadas de maneira muito popular no centro da cidade. Entre 1982 e 1986, minha família foi morar na Inglaterra. Vivi isso no lado inglês também, frequentando grandes salas inglesas. Foi assim que aprendi a associar o filme à sala, algo que foi pulverizado nos anos 1990 com a chegada dos multiplex. Essa coisa de descobrir um filme e associá-lo à sala é algo que acabou. Recife ainda tem a sorte de ter o São Luiz, que é a grande sala que sobreviveu por lá. Poucas cidades no mundo tiveram essa sorte. Nova York não conseguiu salvar a última grande sala, Ziegfeld. Estou trabalhando em um filme agora que abandonei momentaneamente por causa do Bacurau, que é um ensaio sobre a arqueologia do centro de Recife a partir das salas extintas de cinema. É um filme muito de arquivo...
Um documentário?
Chamo de ensaio, mas creio que vai ser visto como documentário. Um ensaio para mim é uma coisa livre, que está menos preocupada com o fato e foca mais em passar uma atmosfera. Será quase de viagem no tempo. Quando se fala de Robocop, não penso apenas no grande filme do Paul Verhoeven, mas lembro daquela sessão que fui ver sozinho em outubro de 1987, no São Luiz. Quando se fala em Aliens, o Resgate, eu lembro do Cinema Veneza, em uma sessão inacreditavelmente lotada. Quando se fala de Veludo Azul, lembro de uma sessão completamente vazia no São Luiz. Climas e sensações diferentes, mas associados a uma arquitetura e a um espaço público, muito democrático, que se perdeu com o tempo. Talvez, com a massificação dos multiplex, a gente esteja vendo uma volta da classe média baixa ao cinema. Isso era uma coisa muito presente no meu período de formação, uma mistura forte de todas as classes num cinema como o Veneza ou São Luiz. Obviamente, isso soa como coisa de gente velha, afinal estou com 50 anos, mas também é algo moderno. É um tema que persigo, me emociona.
Falando em multiplex, há o domínio absoluto de Hollywood nas salas brasileiras, o que faz com que os filmes nacionais tenham dificuldade de encontrar seu público. Recentemente, tivemos o exemplo de Vingadores: Ultimato, que ocupou 92% das salas do país. Qual deveria ser a posição do poder público?
Mas existem leis. Isso não é para ser discutido pois está na nossa Constituição. Há uma lei que protege o mercado brasileiro, e essa lei existe em países civilizados, como França, Canadá, Portugal, Alemanha. De uma proteção natural contra um produto massificado. Um filme não pode ocupar mais do que 30% de um circuito. Isso é lei (Nota da Redação: a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região suspendeu o limite de salas que um mesmo filme em cartaz pode ocupar em novembro de 2018. A cota de tela 2019 ainda não foi assinada pelo presidente Jair Bolsonaro). É um pouco parecido com alguém dirigir em rua a 120 km/h na qual só é permitido até 50 km/h. Essa pessoa deveria ser parada pela polícia e multada, talvez tenha até a carteira suspensa. Quando eu posto no Facebook que um filme como Vingadores está ocupando mais do circuito brasileiro, isso é ilegal. Esse filme teria alcançado o mesmo número espetacular que alcançou se a lei tivesse sido observada, pois a demanda vai encontrando espaço para isso acontecer.
Bacurau tem sido descrito como um filme que contém elementos de aventura, western e ficção científica, ou seja, um filme de gênero. Que espaço o filme de gênero nacional tem no Brasil?
Com as políticas públicas direcionadas à diversidade não só dos realizadores, mas também das regiões e das temáticas, o cinema brasileiro foi usando novos vocabulários, novas letras do alfabeto. Fico feliz em estar contribuindo com essa renovação do vocabulário porque O Som ao Redor, mesmo sendo de realismo social, já tem insinuações ao gênero. A mesma coisa com Aquarius e Bacurau. O trabalho de Juliana Rojas e Marco Dutra, Gabriela Almeida, Rodrigo Aragão, Dennison Ramalho, além do próprio Juliano Dornelles, que fez o curta Mens Sana in Corpore Sano, enfim, tem muita gente ajudando o cinema brasileiro a ir mudando a cara. Hoje, já não é um espanto ou motivo de chacota fazer um filme que sai fora dos trilhos do realismo habitual. Tudo isso me faz pensar muito no que José Mojica Marins (Zé do Caixão) deve ter sofrido nos anos 1960, não só com a crítica brasileira da época, mas também com a censura, por fazer filmes fora dos padrões do cinema brasileiro. Acho que esse cara é um grande herói e merece ser homenageado sempre.
Como fã de cinema de gênero, quais os filmes e diretores fundamentais de sua formação?
Nos anos 1970, quando eu era criança, tive um acesso muito forte ao Spielberg. Tive a sorte de ver com nove anos Contatos Imediatos de Terceiro Grau, que até hoje é um filme muito particular dentro da produção americana. Extremamente popular, mas muito singular, às vezes parece filme do Robert Altman. Tem um senso de realismo que falta hoje no cinema de fantasia de grande escala, principalmente em relação aos super-heróis. Você vê Contatos Imediatos de Terceiro Grau, E.T. ou Gremlins, até Halloween, e eles se passam em uma vizinhança que poderia ser brasileira de classe média.
Como se o perigo estivesse próximo ao espectador.
Absolutamente realista. Tem uma geladeira, abre a geladeira e tem garrafa d’água, sanduíche, presunto. Tem um sofá, televisão, babá... São coisas que sempre me chamaram atenção e sempre me perguntei porque a gente não faz algo assim no Brasil. O Som ao Redor é exatamente isso. Claro, tem um verniz de observação social brasileira bastante grande, mas trabalha com esse tipo de identificação. Não se passa em lugares estilizados, onde tudo é preparado, como a rua estar molhada para ficar mais bonita. É tudo muito a minha rua, só que os enquadramentos são de cinema, em cinemascope (tecnologia de filmagem que utiliza lentes anamórficas), a cozinha é uma cozinha, mas no enquadramento entram lembranças de Brian De Palma ou Alfred Hitchcock. Filmar uma cozinha como um documentário não acho interessante. É uma cozinha com cinema. É aí que tem o choque.
Por muitos anos, você exerceu o ofício de crítico e, a exemplo de outros críticos, passou a fazer filmes. Como foi esse processo de transição?
De maneira gradual, muito naturalmente. Cursei Jornalismo no Recife porque não tinha escola de cinema. Era o mais próximo que poderia chegar de cultura e de cinema. Desde cedo, entendi que tinha uma facilidade para escrever, escrevia relativamente bem. Então, jornalismo foi um caminho natural. Fui trabalhar com jornalismo cultural, sempre tentando puxar para o cinema. Até que virei crítico no Jornal do Comércio. Nos anos 1990, eu continuava fazendo vídeos e coisas assim, mas por causa das hierarquias de formato, o videasta era menos respeitado que o cineasta. Fui me cansando de lutar tanto e não ter resultados interessantes. Eu gostava do que fazia, mas não tinha a exposição que mereciam. Quando fiz Enjaulado, um vídeo de ficção que foi muito bem sucedido, enchi um pouco o saco e passei quatro anos me dedicando só à crítica. Nesse momento também comecei a programa o cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Então, aconteceu a revolução digital e dei uma dignidade maior ao vídeo. Digital agora era cinema. Vídeo não era cinema, era vídeo. Fiz A Menina do Algodão, depois Vinil Verde, e uma coisa foi levando à outra. Os curtas foram tendo uma repercussão cada vez maior. Até que foi surgindo a pergunta de quando viria o primeiro longa, quase como quando a pessoa casa e questionam quando vai ter filho (risos). Veio então o documentário Crítico, que era um registro da minha vida como crítico e a minha relação com o cinema através dos realizadores. Naturalmente, veio O Som ao Redor, Aquarius e agora Bacurau. Ou seja, é muito trabalho em 20 anos e tem uma certa lógica, que vai evoluindo, eu espero (risos).
Quando era crítico, você chegou a criar alguma inimizade?
Sempre (risos). Infelizmente, sempre. O trabalho da crítica não necessariamente passa pelas coisas agradáveis. Às vezes, quando você é muito verdadeiro, cria arestas e tensões. Os filmes são muito importantes para as pessoas, mas, ao mesmo tempo, fazem parte da cultura. Às vezes, quando você se debruça sobre um filme para tentar entender o que ele diz sobre a cultura, pode acabar fazendo questionamentos que são negativos. É natural que você crie não só admiradores com parte dos cineastas. Por exemplo, eu tinha uma relação muito carinhosa como crítico com Héctor Babenco, que era um cara que muitos consideravam difícil. Por mais que muitas vezes seja um situação desconfortável você como crítico ter uma relação boa com cineasta. O que vai acontecer quando o cineasta fizer um filme de que você não gosta? Ou você escreve e testa a amizade e a admiração mútua, ou evita escrever.
Como você lida com uma crítica negativa a seus filmes?
Reajo com naturalidade. Uma coisa que descobri durante a realização de Crítico é que os cineastas mais nobres ou os que falam que a crítica é muito importante são os que são bem tratados. Os cineastas maltratados e agredidos não têm uma relação tão nobre. Tivemos um oportunidade linda na França, eu e a Emilie Lesclaux (esposa de Kleber) jantamos com John Landis (diretor responsável por filmes como Um Lobisomem Americano em Londres e do clipe icônico de Thriller, de Michael Jackson) e a esposa dele. Ele é um cara muito engraçado. John perguntou como entrei no cinema. Respondi que comecei como crítico. Imediatamente, ele colocou o guardanapo em cima da mesa e disse "ok, estou indo embora". Aparentemente, ele não tem uma boa relação com a crítica (risos).
Na sua participação no programa Conversa com Bial, o apresentador comentou na abertura que o reconhecimento do cinema brasileiro na atualidade é ímpar, só comparável à época do Cinema Novo. O que contribui para esse prestígio da atual produção de cinema brasileiro internacionalmente?
Uma construção de cerca de 20 anos, mas muito mais forte nos últimos 15 anos de políticas de apoio à cultura, mas também de descentralização da produção, que antes era muito concentrada no Rio e em São Paulo. O cinema brasileiro nos últimos 15 anos expandiu seu vocabulário. Hoje você vê filmes de lobisomem, de ação no sertão, intimista em apartamento de Fortaleza ou Belo Horizonte. Você vê filmes de realizadores e realizadoras de várias orientações sexuais em todas as regiões do Brasil. É um sistema de sucessos que é absolutamente impossível ignorar em termos de resultados reais.