Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes em maio e elogiado pela imprensa internacional, Bacurau abre luxuosamente a 47ª edição do Festival de Cinema de Gramado nesta sexta-feira (16). Dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o longa será exibido a partir das 18h, no Palácio dos Festivais, em sessão com presença de elenco e realizadores.
Kleber volta a Gramado novamente com um filme hors concours, que não integra a mostra competitiva. Em 2016, abriu o evento com o aclamado Aquarius. Quatro anos antes, O Som ao Redor deu ao cineasta pernambucano o Kikito de melhor diretor. Nesses dois filmes, Juliano foi o diretor artístico. Os dois assinam o roteiro de Bacurau, que terá em Gramado sua primeira exibição pública no Brasil – estreia no dia 29 de agosto.
O filme combina gêneros como horror, faroeste, ação e fantasia em um povoado do sertão de Pernambuco chamado Bacurau, que se vê assombrado por estranhos fenômenos. Literalmente apagada do mapa, a comunidade isolada, que vive utópica convivência entre as diferenças, se vê ameaçada por violentos invasores. Em entrevista a GaúchaZH, os diretores falaram sobre a produção.
Qual foi o ponto de partida para Bacurau?
Kleber: Dois amigos assistindo a alguns filmes no Festival de Brasília (em 2009). Estávamos lá com o curta Recife Frio. Alguns filmes eram documentários sobre comunidades em lugares distantes do Brasil. Tinham um certo clima de pessoas simples sendo observadas. A partir daí, começamos a conversar sobre a ideia do cinema olhar para o Nordeste ou comunidades pobres do Brasil com um jeito um tanto vertical, mesmo que sejam olhares bem-intencionados. Foi só o ponto de partida, porque crescemos vendo uma mistura muito grande de filmes de gênero, brasileiros, de vários lugares do mundo, e o cinema fantástico sempre fez parte da nossa formação.
Como foi a concepção estética e narrativa do filme?
Kleber: A ideia era fazer um filme brasileiro sem concessões a uma cartilha de como fazer cinema de gênero como os americanos ou ingleses fazem. Bacurau seria um projeto mais abertamente abraçado com o estranho, com o inusitado, com elementos mais associados ao terror e ao suspense. Sempre pensamos em fazer um filme com um look referencial a um cinema americano dos anos 1970, que particularmente amo.
Juliano: É um filme de gênero mas com os pés fincados em uma estética muito autêntica, realista e brasileira. Na nossa cabeça, Bacurau é uma espécie de microssociedade brasileira que funciona de uma maneira talvez mais justa e respeitosa, convivendo bem com suas individualidades e diferenças. Fez com que a gente procurasse ter uma representação total, o máximo possível do tipo de pessoas, e fomos bem felizes nesse sentido.
Como funcionou a dinâmica e a divisão de tarefas entre Kleber e Juliano ao longo da produção, da elaboração do roteiro ao trabalho com o elenco no set?
Kleber: Não tínhamos uma divisão de tarefas. O filme foi escrito obsessivamente por nós dois por muito tempo. Às vezes, havia espasmos de produção, de meses ou semanas. Muita coisa aconteceu durante esses 10 anos, como Som ao Redor e Aquarius. Mas a gente estava sempre pensando em Bacurau. Sempre fazíamos tudo muito juntos.
Planejam outros trabalhos em parceria?
Juliano: Somos amigos. Praticamente família. É muito provável de acontecer outras parcerias, adoraria continuar minha vida fazendo cinema do lado dele. Além de tudo, é um ídolo para mim, admiro demais. Quero estar perto dele, e acho que ele quer estar perto de mim. Acho que é uma coisa natural trabalharmos juntos de novo. Espero que role.
O que Bacurau tem de universal dentro de sua brasilidade?
Juliano: O olhar estrangeiro está sendo muito parecido com o olhar brasileiro. Eles parecem ter um alcance bem profundo dos detalhes e das características mais locais do filme. E a recepção está sendo incrível, as pessoas estão entendendo muito o filme. É um conceito antigo: uma forma de alcançar a universalidade é ser o mais local possível. A trama é universal: mais uma história de invasão e opressão, julgamento. Tudo isso é muito familiar a qualquer lugar. As reações são muito parecidas. O filme tem um elemento de entretenimento muito forte, um elemento de catarse muito forte.
Kleber: O filme tem uma série de personagens que segue a cartilha do fascismo, o que é extremamente atual. Todos esses anos em que elaboramos o roteiro estávamos conectados com muita informação. Não abandonamos as redes sociais e sites de notícia.
Como foi trabalhar com o ator alemão Udo Kier? Como ele se integrou ao projeto?
Juliano: Para mim que sou cinéfilo e gosto muito do cinema de gênero, ter Udo Kier foi uma honra porque é um ícone do cinema de gênero. Hoje é um amigo. Ele imediatamente entendeu o filme e embarcou 100% na história. Udo se emocionou muito na première em Cannes. Ele chegou a dizer que fez 200 filmes, 100 eram ruins, 50 você poderia gostar se estivesse bebendo alguma coisa, os outros 50 eram bons, mas com Bacurau ele chorou. Dá para ter uma ideia do tamanho da integração dele ao projeto.
Por que Udo foi escolhido?
Juliano: Ele que escolheu a gente. Ele conheceu o Kleber em Los Angeles, viu Aquarius e, imediatamente, disse que queria fazer um filme com o Kleber. Quando Kleber voltou dessa viagem e falou de Udo, meus olhos brilharam. Quando a gente se juntou para terminar o roteiro, escrevemos o personagem fantasiando que seria ele, isso antes de conversar com Udo de fato ou ter uma confirmação. Quando o roteiro ficou bem bom para a gente, mandamos o roteiro para Udo. Deu tudo certo.
Kleber: É uma pessoa absolutamente fascinante. Um cara que ama a vida, tem muita energia, muito engraçado e sabe contar histórias riquíssimas. Foi um privilégio.
Como foi trabalhar novamente com Sonia Braga?
Kleber: Foi uma experiência completamente diferente de Aquarius, onde Sonia tinha o papel clássico de uma heroína. Acho que foi extremamente feliz em aceitar fazer Domingas em Bacurau. É um filme em que é muito difícil apontar um personagem principal, pois não existe, todos são importantes. Domingas é uma personagem muito peculiar, e Sonia viu isso no roteiro. É como se no Aquarius ela fosse uma estrela, e aqui em Bacarau é uma atriz de composição de personagem. Mais uma vez muito feliz em trabalhar com ela.
De que maneira o universo fantástico de Bacurau se aproxima do Brasil contemporâneo?
Juliano – O Brasil está vivendo dias surreais. Bacurau está quase deixando de ser um universo fantástico. Está virando um universo de realismo social. Isso é muito impressionante e assustador. Muitos detalhes que a gente colocou tratando de uma situação absurda ou surreal estão acontecendo na vida real. Temos áreas de desmatamento que estão sendo apagadas do mapa, e Bacurau é apagada do mapa. É um ponto de preservação e resistência. Pessoas ali estão sendo ameaçadas. O universo de Bacurau está próximo da realidade brasileira porque o Brasil se tornou um filme de fantasia.
Kleber – Muitas das construções dos conflitos de Bacurau são arcaicas. São frutos de um Brasil que não aprende nunca as lições da história. O filme tem elementos que tocam na relação dos políticos com o povo, na forma como o povo utiliza a inteligência para sobreviver, no desrespeito com a cultura e a educação, na violência, na história que o mundo tem de invasões. É muito fácil dizer que Bacurau é futurista e que sua realidade está chegando, mas muita coisa do filme já existe há décadas na nossa sociedade.