Como alegoria cinematográfica, por vezes, Bacurau é bem pouco sutil. Mas é a ambição com que costura uma delirante colcha de temas e estilos cinematográficos que faz a beleza e a relevância do filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o grande destaque da primeira noite do Festival de Cinema de Gramado em 2019.
Mesmo antes de qualquer exibição pública no Brasil, Bacurau já era o filme nacional do ano devido ao feito obtido no festival de Cannes – faturou o prêmio especial do júri de um dos maiores festivais do mundo. Em sua primeira exibição no Brasil, nesta sexta-feira (16), em sessão especial em Gramado, ele conseguiu também obter uma aprovação entusiasmada da plateia, que aplaudiu e vibrou em vários momentos como se assistisse a um faroeste clássico, apenas um dos elementos que Bacurau traz em seu DNA.
Bacurau conta a história do povoado de mesmo nome, situado em uma região indeterminada da Caatinga. Local vinculado administrativamente ao município vizinho de Serra Verde, o lugar é praticamente um enclave rebelde em que a população se tranca em casa para não receber a visita do ardiloso prefeito em campanha por reeleição, sentinelas vigiam a estrada e a água de uma represa próxima foi interditada para o consumo dos moradores, que dependem de um caminhão-pipa que faz viagens frequentes.
Aos poucos, pequenos elementos lançados pontualmente pelos diretores estabelecem um estranhamento que vai revelando a distopia futurista daquela realidade. Caixões são uma mercadoria cobiçada, o voto pode ser registrado numa caneta eletrônica, edifícios abrigam televisões de tela plana e mesmo o caminhão de som itinerante do DJ Urso, espécie de rádio pirata local, é decorado com um imenso painel de LED. Víveres e medicamentos distribuídos pela prefeitura são na verdade ferramentas de controle social, já que os remédios são para alterações de humor e os mantimentos estão vencidos, em sua maioria. A distante São Paulo é definida a certo momento como um "paiol" em que execuções públicas são realizadas ao vivo pela TV.
Certo dia, coisas ainda mais estranhas começam a ser registradas no cotidiano da cidade, o primeiro delas o fato de que Bacurau é literalmente apagada do mapa, mesmo os atualizados por satélites. Dois motoqueiros do Sudeste aparecem na cidade com a desculpa de estarem fazendo trilhas pela Caatinga e implantam clandestinamente um misturador que abafa os sinais de celular, isolando a cidade. É apenas o primeiro passo de um plano de extermínio que está sendo posto em prática por um sinistro grupo de milicianos estrangeiros chefiados pelo alemão Michael (Udo Kier). Quando as mortes começam, Bacurau precisará se defender da melhor forma que puder, numa resistência encabeçada pelos bandoleiros procurados Pacote (Thomas Aquino) e Lunga (Silvero Pereira), além da médica Domingas (Sônia Braga).
Bacurau é muitas coisas em um único filme. É um western nordestino vigoroso, que faz do cangaço elemento simbólico de resistência. É também um suspense sólido, com muitos elementos de horror gore. É também uma alegoria do Brasil explorado por americanos de dedos nervosos no gatilho e uma denúncia do abandono dos grotões. A técnica apurada também potencializa o suspense. Como uma cruza bastarda entre Glauber Rocha, John Ford e John Carpenter.
Nem tudo funciona às mil maravilhas, contudo. Embora o elenco seja um destaque positivo, com interpretações ótimas de Sônia, Bárbara Colen (uma jovem que volta a Bacurau para o enterro da avó, matriarca e guardiã do lugar) e Wilson Rabelo (o professor da cidade, Plínio), Bacurau é, desde o nome, um longa sobre o coletivo, a comunidade, uma resistência feita da união - e, por isso, não tem um verdadeiro "protagonista", embora ensaie isso com vários dos personagens, muitos deles com um potencial rico que não é plenamente explorado. Embofra Udo Kier dê ao miliciano exterminador um ar de sinistra crueldade, seu temperamento torna-se a certo ponto errático sem motivo.
Ainda assim, Bacurau é um prodígio de domínio de técnica, com algumas sequências que vão entrar para a memória coletiva do cinema nacional (como uma invasão de cavalos no vilarejo ou a sangrenta batalha final). Se em Bacurau o sexo e a nudez são elementos que não chocam, para os caçadores americanos a sexualidade só se expressa após a adrenalina da violência. Apesar de por vezes não ser muito sutil com alegoria, Bacurau é um filme pleno de simbologias, e suas imagens permanecem em um tempo de cinema esquecível. Só isso já é um triunfo.