O filme mais aguardado do fim de semana no Festival de Gramado é a reconstituição histórica de um período turbulento da democracia brasileira (outro período, pensando bem). Legalidade, dirigido por Zeca Brito, será exibido fora da competição, em sessão especial, às 20h30min de domingo, no Palácio dos Festivais.
Produção da Prana Filmes, a obra foi exibida em junho deste ano no 42º Festival Guarnicê de Cinema, em São Luís (MA), e voltou de lá premiada nas categorias de direção (Zeca Brito), direção de arte (Adriana Borba), fotografia (Bruno Polidoro) e melhor ator (premiação póstuma de Leonardo Machado, que morreu em 2018).
Fruto de sete anos de produção, cinco deles dedicados a pesquisas e à escrita do roteiro por Brito e Leo Garcia, Legalidade entrelaça um triângulo amoroso fictício com o pano de fundo real da Legalidade, movimento liderado por um então jovem governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola (vivido por Machado) no fim de agosto e início setembro de 1961 para garantir a posse de João Goulart na Presidência da República, após a renúncia de Jânio Quadros, como previa a constituição, e impedir uma tentativa de golpe militar.
Nos tensos 14 dias em que Brizola tenta organizar um movimento de resistência encastelado no Palácio Piratini e conclamando a população pelo rádio, o filme enfoca as narrativas paralelas de dois irmãos disputando a mesma mulher. Fernando Alves Pinto, rosto bem conhecido do cinema nacional, protagonista de Terra Estrangeira e Dois Coelhos, vive o antropólogo e amigo de Brizola Luis Carlos, rival do irmão jornalista Tonho (José Henrique Ligabue) nas atenções da correspondente internacional do Washington Post Cecília, interpretada por Cleo Pires. O personagem de Luis Carlos é vagamente inspirado em Darcy Ribeiro, correligionário e amigo de Brizola, mas o próprio Fernando Alves Pinto já declarou, em uma entrevista concedida no set de filmagem a Zero Hora que sua atuação não tem nada da efusividade vulcânica do original.
– Até pensei se fazia algo com aquele nível de energia, mas decidi por um tom mais sério para o personagem – disse Alves Pinto.
Para além de sua relevância como reconstituição de um episódio político crucial, Legalidade também é um filme esperado em Gramado por seu caráter de homenagem. A sessão especial será realizada como uma elegia ao ator gaúcho Leonardo Machado, que morreu no ano passado, aos 42 anos, em decorrência de um câncer. O troféu de melhor ator no Festival Guarnicê será entregue a seus familiares. Machado era mestre de cerimônias recorrente do festival desde 2010 – atuou inclusive na edição do ano passado, realizada pouco mais de um mês antes de sua morte. Ele também recebeu um Kikito em Gramado, em 2009, pela sua atuação no filme Em Teu Nome, de Paulo Nascimento.
Numa visita de Zero Hora ao set do filme, em 2017, Machado falou sobre como se preparara para interpretar uma figura tão conhecida como Brizola:
– Tentei encontrar não só a voz, mas o gestual, aquele gesto de mão característico que ele tinha. Parecia que ele falava como quem tinha a cuia do chimarrão na mão.
Entrevista com Zeca Brito, diretor de Legalidade.
Um dos mais prolíficos realizadores do cinema gaúcho, passeando com desenvoltura entre o documentário e a ficção, o bajeense Zeca Brito soma com Legalidade seu sexto longa-metragem. Em entrevista a ZH, o diretor fala sobre o processo de realização do drama histórico e sobre sua expectativa com a sessão em Gramado.
Qual sua expectativa de exibir o filme pela primeira vez no Rio Grande do Sul?
Estou com o coração na boca. É uma história que adormeceu na garganta de muitas gerações. Tem muito afeto envolvido, famílias que abriram suas memórias, que autorizaram que as histórias de seus familiares estivessem ali.
Em que medida Legalidade é um filme político?
Legalidade é um filme histórico que lança uma visão sobre a fragilidade da democracia brasileira. É mais cívico do que político. É político ao entrelaçar a história da América Latina, a Guerra Fria e as tensões socialismo/capitalismo. E, neste cenário, Brizola e o trabalhismo se colocando como caminho do meio. O episódio da Legalidade foi um tabu durante a ditadura militar brasileira, não foi contado em sala de aula nem apareceu nos livros didáticos. Qualquer relação que possa existir com o Brasil de hoje não vem do filme, mas sim da própria realidade brasileira. Se a realidade flerta com um passado antidemocrático, se os direitos humanos e a constituição estão em risco, então temos um problema.
Como se deu a elaboração do roteiro entre o compromisso com a verdade histórica e a liberdade para costurar um romance?
Meu pai um dia me disse: “O movimento da Legalidade daria um bom filme”. Meu pai, Sapiran Brito, é trabalhista e tem o Brizola como principal referência pública. Minha convivência com o Brizola vem da infância. Com a ideia na mão procurei o Leonardo Garcia e o convidei para escrever o roteiro. O pai dele também aconselhou que a história era quente. Em um país sem memória, as histórias familiares são fundamentais. Nosso ponto de partida foi o romance histórico, gênero literário muito cultuado no Rio Grande do Sul. Compartilhamos um longo processo de pesquisa e posterior trabalho de escrita. Procuramos ler tudo que existia sobre o episódio, livros, dissertações, teses, entrevistas, para compor uma cronologia que abraçasse distintos pontos de vista. Depois saímos a campo e entrevistamos testemunhas e familiares dos personagens. Dos personagens históricos vêm ações e falas reais, os dilemas da nação, a luta democrática. Dos personagens fictícios, a paixão, o drama, a aventura e as emoções humanas. Os personagens fictícios são sínteses ou mesmo metáforas de uma determinada realidade, ideia ou discurso. Cecília Ruiz (Cléo Pires) é uma metáfora dos “interesses internacionais”, representa uma jornalista americana e sua visão sobre a democracia brasileira. Sua presença no filme é ficcional e poética, mas fruto de síntese e interpretação histórica. Brizola era um dos homens mais investigados pela CIA naquele período.
Quais foram os maiores desafios em temos de logística e orçamento para fazer um filme de época?
O filme custou R$ 2,5 milhões, levou nove anos de trabalho e conta com mais de 2 mil pessoas envolvidas. É resultado de um tremendo esforço de produção da Prana Filmes e de todo elenco e equipe. Legalidade é também uma demonstração de muita coragem. Nosso filme reabre feridas dolorosas e profundas, que nunca foram cicatrizadas.