Noite de sexta-feira. Fumando um cigarro, em pé diante da balaustrada, o ator Fernando Alves Pinto contempla as linhas solenes de uma das paredes do Palácio Piratini. Passam-se alguns segundos e Cleo Pires, trajando um tailleur de lã cinza, se aproxima. Ambos estão agora no centro de um semicírculo formado por sacos de aniagem e ladeado por duas metralhadoras. O diálogo é tenso, e versa sobre esperanças em um momento de grande risco. Cleo depõe a bolsa preta que carregava no parapeito, próximo da grande metralhadora dinamarquesa à sua esquerda. É aí que a voz do diretor de cinema Zeca Brito interrompe o ensaio para dizer que a bolsa ficaria melhor mais para a direita, entre os dois atores.
Cleo e Fernando estão, sob a direção de Brito, ensaiando a cena que rodarão logo mais no longa Legalidade, em fase de filmagem. Com roteiro de Brito e Leo Garcia, a produção enfoca as intensas semanas de agosto e setembro de 1961 em que, após a renúncia de Jânio Quadros e com seu vice em viagem pelo Exterior, Brizola organizou um movimento de resistência à tentativa do dispositivo militar de impedir a posse do vice, prevista na Constituição.
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– Eu brinco que esse é um filme que estou fazendo para pagar uma dívida com meu pai. Quando, há uns 20 anos, eu disse para ele que queria ser diretor de cinema, a primeira coisa que me disse foi: "Então um filme que tu tem de fazer é sobre a Legalidade" – conta Brito, que, entre pesquisas, entrevistas e mais de um tratamento do roteiro, vem desenvolvendo o projeto do filme há cinco anos.
Produção da Prana Filmes, com previsão de estreia para 2018, Legalidade enfoca o triângulo amoroso entre personagens fictícios engolfados pelo turbilhão dos acontecimentos daqueles 14 dias. Fernando Alves Pinto, um rosto bem conhecido do cinema nacional, protagonista de Terra Estrangeira e Dois Coelhos, vive o antropólogo Luis Carlos, que disputa com seu irmão, o jornalista Tonho (José Henrique Ligabue), as atenções da correspondente internacional Cecília, interpretada por Cleo Pires. O personagem de Luis Carlos é uma das formas de o diretor ancorar, de modo simbólico, a história da Legalidade em um quadro maior de tensões da história nacional.
– No filme, o Luis Carlos está trabalhando em um projeto nas Missões. Muita gente me comenta que um filme desses teria ligação com o que ocorre agora e até tem, mas eu trouxe as Missões como uma forma de ligar a história ao passado, a um outro momento em que uma crise provocada por forças estrangeiras, como já ficou comprovado no caso dos golpes dos anos 1960, estão pondo em choque a soberania do território – comenta Brito.
O personagem de Luis Carlos é vagamente inspirado em Darcy Ribeiro, amigo de Brizola, mas Fernando Alves Pinto diz que sua interpretação busca um tom mais austero do que a vulcânica extroversão de Ribeiro. – Até pensei em um primeiro momento se fazia algo com aquele nível de energia, mas decidi por um tom mais sério para o personagem.
O cronograma de produção de Legalidade prevê 27 dias de filmagens. Desses, oito devem ser usados para imagens no Palácio Piratini, epicentro do movimento de resistência liderado por Brizola – as cenas do porão do Piratini, onde foi montado o estúdio da Rádio da Legalidade, serão registradas na Prefeitura Municipal.
– Filmar aqui faz toda a diferença, é possível sentir toda uma energia, pois tudo aconteceu aqui. – diz Leonardo Machado, intérprete de Brizola.
Para Zeca Brito, a locação é tão importante quanto os personagens.
– O palácio é um dos protagonistas do filme, rodar aqui é mágico – comenta. O ensaio terminou, a iluminação está ajustada, a posição da bolsa está definida. Brito pede que um dos técnicos derrame água sobre a pedra da balaustrada do palácio para provocar gradações de luz, e agora a cena será filmada de fato.
– Vamos lá, gente. Energia, concentração, amor, revolução.
Brizola é figura central na produção
Enquanto Cleo e Fernando filmam a sequência que terminará com uma cena de amor entre seus personagens, em outro aposento do Piratini, transformado em camarim improvisado, Leonardo Machado se prepara para tornar-se o mais importante personagem da história contada em Legalidade: Leonel Brizola. Para viver o então governador do Rio Grande do Sul, Machado cultivou um bigodinho fino ao estilo do que o jovem político usava naquele tempo e fez permanente nos cabelos lisos e finos para ter uma aparência mais condizente com o "pelo duro" do governador gaúcho. A maquiagem também inclui lentes de contato para escurecer os olhos azuis do ator.
– Em primeiro lugar, é claro que é uma honra interpretar um personagem desse tamanho. Ao mesmo tempo, é uma responsabilidade enorme. No dia em que eu fui anunciado oficialmente como o Brizola do filme, eu recebi 500 mensagens in Box nas redes sociais. Nunca recebi tantas mensagens, de gente me felicitando, compartilhando histórias, contando causos. Ou seja, há uma multidão de gente que verdadeiramente ama o Brizola.
Machado, hoje com 40 anos (Brizola tinha 39 na época da Legalidade), mergulhou em uma intensa pesquisa que incluiu leituras, entrevistas e conversas com pessoas que conheceram o ex-governador. Ao longo da entrevista, mais de uma solta um "interésses" pronunciado com o segundo “e” aberto, à maneira do político gaúcho. Assistiu também a muitas imagens para apanhar, mais do que o modo de falar, o gestual característico de Brizola. E precisou também fazer uma síntese entre o Brizola que se tornaria nacionalmente conhecido na volta do exílio e o jovem político em ascensão dos anos 1960 – época em que os registros audiovisuais sobre ele são em menor número.
– O gestual dele era muito significativo. Aquela mão que ele sempre erguia, aquela mão é ele falando e segurando uma cuia de chimarrão imaginária, cada dedo crispado, contando uma história– diz Machado.
Para o diretor Zeca Brito, embora o paralelo entre a crise daquele período e a de agora não seja algo que ele pretenda forçar na narrativa, será inevitável para quem assistir ao filme imaginar um contraponto entre uma crise vivida com e sem Brizola:
– Diante da incrível mediocridade da classe política de hoje, faz muita falta uma figura como Brizola, com sua franqueza e com seu pensamento nacionalista, sua coragem de acreditar no povo brasileiro, não de uma maneira apenas discursiva, mas acreditar de verdade.