Não há flor que se cheire em Eu me Importo (I Care a Lot, 2020), filme lançado recentemente pela Netflix. Talvez apenas um personagem preste, mas mesmo essa pessoa acaba tomando uma atitude que não é exatamente exemplar, virtuosa, positiva.
O filme é escrito e dirigido pelo inglês J Blakeson, de A 5ª Onda (2016) e Sequestrando Stella (2019). Depois de encarnar duas personagens reais e renomadas — a jornalista de guerra Marie Colvin (Uma Guerra Pessoal, 2018) e a cientista Marie Curie, ganhadora de dois prêmios Nobel (em Radioactive, 2019) —, a também inglesa Rosamund Pike volta a viver um tipo fictício e nada confiável, como a protagonista de Garota Exemplar (2014), pela qual concorreu ao Oscar. Parece que papéis assim lhe dão sorte: a Marla Grayson de Eu me Importo valeu a Rosamund, no domingo (28), o Globo de Ouro de melhor atriz em musical ou comédia.
De musical o filme não tem nada, e para comédia depende do seu senso de humor. Afinal, Marla é uma golpista mau-caráter: seu negócio é tornar-se tutora legal (no sentido da lei, cabe reforçar) de idosos para tomar posse de todos os bens de vítima, fazendo fortuna com a venda de casas, carros, móveis, joias etc. Ela tem uma sócia no crime, Fran (a mexicana Eiza González, de Em Ritmo de Fuga), conta com uma médica que forja atestados de incapacidade e mantém uma parceria com uma clínica geriátrica onde os pacientes são internados, não raro à revelia da família.
Não há qualquer tipo de remorso, tampouco Marla faz isso como uma espécie de vingança contra a sociedade, apesar de na abertura em off ela discursar contra a farsa do sonho americano:
— Eu costumava ser como você, pensando que trabalhar muito e jogar limpo levaria ao sucesso e à felicidade. Não importa. Jogar limpo é uma piada inventada pelos ricos para manter o resto de nós na pobreza. E eu tenho sido pobre. Isso não combina comigo. Porque há dois tipos de pessoas neste mundo: as pessoas que recebem e as que retiram. Predadores e presas. Leões e cordeiros. Eu não sou um cordeiro, sou uma porra de uma leoa.
Eu me Importo, portanto, é um filme sobre a natureza selvagem do capitalismo, sobre como, nessa floresta, os mais velhos são desassistidos quando não podem mais caçar. A próxima presa da predadora Marla parece ser uma galinha dos ovos de ouro — e de diamantes. Trata-se de Jennifer Peterson, encarnada por Dianne Wiest, duas vezes vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante (por Hannah e suas Irmãs, de 1986, e Tiros na Broadway, de 1994, ambos dirigidos por Woody Allen). Mas essa senhorinha aparentemente dócil esconde um segredo.
Pausa para quem não sabe nada do filme e pode entender como spoiler o que vem a seguir.
Bem, a surpresinha, como diz a sinopse da Netflix, guardada por Jennifer é sua ligação com um gângster, Roman Lunyov (Peter Dinklage, o Tyrion Lannister da série Game of Thrones). Ou seja, Marla mexeu com a pessoa errada.
O conflito rende bons momentos, principalmente enquanto Roman tenta libertar Jennifer pelos meios (mais ou menos) legais — vide a divertida participação de Chris Messina como um advogado. Mas a certa altura o criminoso vai acabar recorrendo à força física, o que inclui tomar decisões burras e inverossímeis, dado que ele deve ser esperto para chegar onde chegou e que cruzar limites não é um problema.
Nesse duelo sem mocinhos, alguns espectadores poderão se sentir desamparados, desnorteados, sobretudo os que gostam de ter uma bússola moral mesmo em filmes sobre bandidos. Torcer para quem, com quem se importar, se todos os personagens em cena são ruins? Tanto pior que J Blakeson contraste essa vilania com o visual impecável de Marla e os trejeitos cômicos de Roman (como seu gosto por doces).
Por outro lado, o distanciamento permite observar o olhar cínico que J Blakeson lança para produtos tipo exportação dos Estados Unidos: o empreendedorismo e a meritocracia. Em Eu me Importo, a única diferença entre Marla e Roman é de gênero. Aliás, há quem alinhe o filme a uma recente leva de obras sobre empoderamento feminino e reação à violência do machismo, de Arlequina e as Aves de Rapina a Bela Vingança, passando por The Perfection e O Homem Invisível. De fato, Marla combate a misoginia:
— Dói mais porque eu sou uma mulher? Porque você foi espancado tão fortemente por alguém com uma vagina? Ter um pênis não o torna automaticamente mais assustador para mim, muito pelo contrário. Você pode ser um homem, mas se algum dia ameaçar, tocar ou cuspir em mim novamente, vou agarrar seu pau e suas bolas e vou arrancá-los.
Mas me soa equivocado compará-la, por exemplo, com a Cassie de Bela Vingança. Ambas as personagens se concedem extravasar a fúria, só que há um abismo moral entre elas.
Falando nisso, e agora repito o alerta sobre spoiler, o diretor J Blakeson não sustenta o desaforo e o incômodo até o fim. O argumento que caçoa da dignidade e da ética é atropelado por um epílogo que, contraditoriamente, sugere haver, sim, alguma espécie de bem e de justiça no mundo. É uma concessão ao moralismo punitivista. Por mais que seja merecida, é uma solução covarde, que torna a leoa de Eu me Importo um gatinho diante de O Tigre Branco, outro filme lançado neste verão pela Netflix que ilustra como o caminho para chegar ao topo passa por pisar nos ombros de alguém.