Os jornalistas que votam no Globo de Ouro agiram como um júri de festival na 78ª edição do prêmio, realizada na noite de domingo com duas apresentadoras e dois palcos — Tina Fey estava em Nova York, e Amy Poehler, em Los Angeles. Nas categorias cinematográficas, que consagraram o drama Nomadland e a comédia Borat: Fita de Cinema Seguinte, praticamente cada vencedor parece ter sido escolhido a dedo, com base em três preceitos: priorizar os filmes e os papéis politizados, contemplar o mais amplo espectro possível de pautas sociais e limpar a barra da própria Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood em relação às críticas sobre falta de diversidade sexual em seu histórico e étnica entre seus quase 90 eleitores.
Querem ver?
Entre os cinco concorrentes ao Globo de Ouro de melhor filme: drama, Os 7 de Chicago, que venceu como melhor roteiro, assinado por Aaron Sorkin, era um filme mais político: reconstituía um célebre julgamento (de ativistas) do passado dos Estados Unidos para refletir sobre a agora finada era Donald Trump. Mas Nomadland (que deve estrear no Brasil agora em março) tem um tema absolutamente contemporâneo e urgente: o impacto da recessão na vida das pessoas comuns. A trama é sobre uma mulher de seus 60 anos, Fern, que perdeu o emprego, a casa e até o marido (ficou viúva) depois do fechamento de uma fábrica em uma cidade chamada, ironicamente, de Empire. A personagem, então, passa a viver como nômade, morando em sua van e vivendo de trabalhos precários. O estopim foi a crise econômica de 2008, mas a história ganhou ainda mais atualidade em meio à pandemia do coronavírus, que também impôs perdas financeiras a muitas famílias.
Nomadland também recebeu o troféu de melhor direção, categoria na qual, pela primeira vez na história da premiação, havia mais de uma cineasta indicada – eram três ao todo. Ficaria chato premiar um homem, né? Sobretudo olhando o retrospecto: nas 77 edições anteriores, apenas cinco diretoras haviam concorrido, e somente uma foi laureada (Barbra Streisand, por Yentl, do longínquo 1984). Chloé Zhao demonstrou virtudes suficientes em seu filme para derrotar Emerald Fennell (de Bela Vingança) e Regina King (Uma Noite em Miami), mas o fato de ser chinesa também pode ter ajudado nestes tempos de cinema globalizado e de pujança oriental – em fato inédito, a China registrou a maior bilheteria do mundo em 2020, com US$ 2,7 bilhões, contra os US$ 2,3 bilhões arrecadados no mercado dos Estados Unidos, que sofreram mais com o fechamento de salas e o adiamento de grandes estreias provocados pela covid-19.
Falando em Ásia e continuando no terreno da mea culpa, a conquista de Minari (que entra em cartaz no Brasil neste mês de março) em melhor filme em língua estrangeira soou como um arrependimento da associação por ter condenado a obra a essa única categoria. Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance, dono de três indicações no troféu do Sindicato dos Atores e bem cotado ao Oscar, Minari é uma produção norte-americana, mas por contar com mais de 50% dos diálogos em coreano, ficou inelegível para os Globos de Ouro com maior visibilidade. Trata-se de mais um anacronismo da associação (a exemplo da divisão entre dramas e musicais ou comédias), realçado pela histórica celebração do sul-coreano Parasita no Oscar do ano passado. Além disso, por que diabos uma agremiação de jornalistas estrangeiros adota um regulamento tão anglófilo?
Ignorado nas indicações a melhor filme, o tema do racismo marcou os prêmios de atuação. A melhor atriz em drama foi Andra Day, protagonista de Estados Unidos vs Billie Holiday (sem data para estrear no Brasil). No filme, a lendária cantora (1915-1959) torna-se alvo do FBI, a polícia federal norte-americana, menos por ser viciada em heroína e mais por ser uma voz pelos direitos civis da população negra — vide sua interpretação de Strange Fruit (1939), canção sobre os linchamentos que ocorriam no sul do país. O triunfo de Andra surpreendeu, pois esperava-se que a vencedora saísse do duelo entre Frances McDormand, de Nomadland, e Carey Mulligan, de Bela Vingança.
O fator homenagem póstuma pesou, mas a escolha de Chadwick Boseman (1976-2020) como melhor ator também está atrelada às tensões raciais. Em A Voz Suprema do Blues (em cartaz na Netflix), seu último papel antes de morrer em decorrência de um câncer, ele deu vida ao trompetista Levee, que diverge da cantora Ma Rainey nas estratégias de defesa e de ataque contra o mesmo adversário: a opressão racial, a apropriação cultural, a exploração da mão de obra e do talento negros pela sociedade branca.
O trio negro de atores premiados é completado por Daniel Kaluuya, melhor coadjuvante por Judas e o Messias Negro (que estreou nos cinemas nacionais na quinta-feira), filme no qual encarna Fred Hampton (1948-1969), líder do partido dos Panteras Negras. Já entre as atrizes coadjuvantes, Jodie Foster venceu como a advogada do personagem principal de The Mauritanian, um homem que, sem acusação nem julgamento, passou 14 anos preso na base norte-americana de Guantánamo, suspeito de terrorismo.
O conteúdo político também vingou nas categorias de musical ou comédia. Havia Hamilton, a versão de um fenômeno da Broadway, e havia Palm Springs, um queridinho da crítica, mas quem levou a melhor foi Borat: Fita de Cinema Seguinte (disponível no Amazon Prime Video), que é mais incisivo do que o musical sobre um dos pais fundadores dos Estados Unidos. No filme, o fictício "segundo repórter mais famoso do Cazaquistão" ataca a administração, os eleitores e os apoiadores de "McDonald" Trump — sobrou piada até com Bolsonaro.
No discurso de agradecimento, o comediante britânico Sacha Baron Cohen (premiado ainda como melhor ator) aludiu à recente reportagem do jornal Los Angeles Times que revelou não haver um único negro entre os 87 votantes do Globo de Ouro:
— Thank you to the all-white Hollywood foreign press (Obrigado à toda-branca imprensa estrangeira de Hollywood).
Antes, três representantes da organização já haviam aparecido no palco para afirmar que "representatividade negra é vital" e que "nós precisamos de jornalistas negros". Mais cedo, do lado de fora do Beverly Hilton Hotel, em Los Angeles, o ator Gregg Donovan (que é branco) havia feito um protesto empunhando um cartaz com a hashtag Times' Up Globes, que conclama a associação a recrutar críticos negros.
Mesmo a vitória de Rosamund Pike como atriz de musical ou comédia pode ser creditada a uma espécie de motivação política. Já que Bela Vingança, em que a personagem de Carey Mulligan busca punir a cultura do estupro, saiu de mãos vazias, o negócio foi premiar a protagonista de Eu me Importo (em cartaz na Netflix), que combate de igual para a igual em um mundo misógino, o do crime, e que profere monólogos como este:
— Dói mais porque eu sou uma mulher? Porque você foi espancado tão fortemente por alguém com uma vagina? Ter um pênis não o torna automaticamente mais assustador para mim, muito pelo contrário. Você pode ser um homem, mas se algum dia ameaçar, tocar ou cuspir em mim novamente, vou agarrar seu pau e suas bolas e vou arrancá-los.
Todos os vencedores (cinema)
Melhor filme: drama
Nomadland
Meu Pai
Mank
Bela Vingança
Os 7 de Chicago
Melhor filme: musical ou comédia
Borat: Fita de Cinema Seguinte
Hamilton
Palm Springs
Music
A Festa de Formatura
Melhor direção
Chloé Zhao - Nomadland
Emerald Fennell - Bela Vingança
David Fincher - Mank
Regina King - Uma Noite em Miami
Aaron Sorkin - Os 7 de Chicago
Melhor roteiro
Os 7 de Chicago
Bela Vingança
Mank
Meu Pai
Nomadland
Melhor atriz de filme: drama
Andra Day - Estados Unidos Vs Billie Holiday
Viola Davis - A Voz Suprema do Blues
Vanessa Kirby - Pieces of a Woman
Frances McDormand - Nomadland
Carey Mulligan - Bela Vingança
Melhor ator de filme: drama
Chadwick Boseman - A Voz Suprema do Blues
Riz Ahmed - O Som do Silêncio
Anthony Hopkins - Meu Pai
Gary Oldman - Mank
Tahar Rahim - The Mauritanian
Melhor atriz em filme: musical ou comédia
Rosamund Pike - Eu Me Importo
Maria Bakalova - Borat: Fita de Cinema Seguinte
Michelle Pfeiffer - French Exit
Anya Taylor-Joy - Emma
Kate Hudson - Music
Melhor ator em filme : musical ou comédia
Sacha Baron Cohen - Borat: Fita de Cinema Seguinte
James Corden - A Festa de Formatura
Lin-Manuel Miranda - Hamilton
Dev Patel - The Personal History of David Copperfield
Andy Samberg - Palm Springs
Melhor ator coadjuvante
Daniel Kaluuya - Judas e o Messias Negro
Sacha Baron Cohen - Os 7 de Chicago
Jared Leto - os Pequenos Vestígios
Bill Murray - On the Rocks
Leslie Odom, Jr. - Uma Noite em Miami
Melhor atriz coadjuvante
Jodie Foster - The Mauritanian
Glenn Close - Era uma Vez um Sonho
Olivia Colman - Meu Pai
Amanda Seyfried - Mank
Helena Zengel - Relatos do Mundo
Melhor filme em língua estrangeira
Minari: Em Busca da Felicidade - EUA
Mais uma Rodada (Druk) - Dinamarca
La Llorona - Guatemala/França
Rosa e Momo - Itália
Nós Duas - França/EUA
Melhor animação
Soul
The Croods 2
Dois Irmãos
A Caminho da Lua
Wolfwalkers
Melhor trilha sonora
Soul
O Céu da Meia-Noite
Tenet
Relatos do Mundo
Mank
Melhor canção
Io Sí (Seen) - Rosa e Momo
Fight for You - Judas e o Mesias Negro
Hear my Voice - Os 7 de Chicago
Speak Now - Uma Noite em Miami
Tigress & Tweed - Estados Unidos Vs Billie Holiday