No ano do caso George Floyd, o racismo foi tema central no cinema norte-americano. Não dá para chamar de coincidência, pois tensões raciais sempre existiram nos Estados Unidos, nem dizer que filmes como Uma Noite em Miami (One Night in Miami), que estreou em janeiro no Amazon Prime Video, foram produzidos à luz do assassinato de um homem negro por um policial branco.
Mas a temporada 2020 (que, por causa da pandemia, avança em 2021) foi marcada por títulos que discutem a luta da população afro-americana por representatividade e contra injustiças, que abordam opressão, silenciamento e exploração, que enfatizam como política, arte e esporte estão imbricados, que apresentam ideias e ações, figuras históricas e personagens fictícios, pessoas comuns que se tornam extraordinárias.
Primeiro longa-metragem dirigido pela atriz Regina King — vencedora do Oscar de coadjuvante por Se a Rua Beale Falasse (2018), e do Emmy pela minissérie Watchmen —, Uma Noite em Miami dá sequência a ficções como Destacamento Blood, A Voz Suprema do Blues, The 40 Year Old Version e aos documentários Até o Fim: A Luta pela Democracia, Time e Vozes que Inspiram (todos disponíveis em plataformas de streaming). Em 25 de fevereiro, chega aos cinemas brasileiros Judas e o Messias Negro, de Shaka King, em que Daniel Kaluuya, o protagonista de Corra!, encarna Fred Hampton, vice-presidente dos Panteras Negras, assassinado em 1969, à época do julgamento reconstituído em Os 7 de Chicago. E há ainda o documentário MLK/FBI, de Sam Pollard, sobre a vigilância do governo norte-americano sobre Martin Luther King (1929-1968).
Baseado em uma peça de Kemp Powers (codiretor e corroteirista de Soul, da Pixar), Uma Noite em Miami imagina o que foi dito no encontro, em fevereiro de 1964, de quatro ícones do movimento negro nos EUA: o boxeador Cassius Clay (às vésperas de trocar o nome para Muhammad Ali), o ativista muçulmano Malcolm X, que seria assassinado um ano depois, o cantor, compositor e empresário Sam Cooke e o jogador de futebol americano Jim Brown, futuro ator de Hollywood. Os quatro são apresentados ao espectador em cenas individuais que retratam enfrentamentos cotidianos em uma sociedade majoritariamente branca. O obstáculo pode ser o preconceito ou a hipocrisia, por exemplo, ou pode ser de carne e osso.
A origem teatral está explícita na concentração da ação em um quarto de hotel (onde eles se encontram após a luta de Cassius contra Sonny Liston), na força dos diálogos e no modo como os quatro personagens são separados para que surjam interações ou conflitos. Assim, Uma Noite em Miami lembra A Voz Suprema do Blues, ainda mais que os dois filmes debatem estratégias — não raro divergentes — de combate ao racismo. Criticado pelos amigos por seu extremismo, Malcolm X pega no pé de Sam Cooke por um suposto silêncio em relação à luta pelos direitos civis (chega a esfregar na cara do cantor a música Blowin' In the Wind, composta e gravada por um branco, Bob Dylan, em 1962).
O elenco, porém, não é tão homogêneo quanto no adeus de Chadwick Boseman. Eli Goree, da série The 100, está caricatural na pele de Cassius Clay (se bem que o próprio pugilista assumia essa persona), e Aldis Hodge (de O Homem Invisível), como Jim Brown, fica um pouco obscurecido diante das duas usinas dramáticas: prêmio de revelação no Gotham Awards, Kingsley Ben-Adir (dos seriados Peaky Blinders e The OA) cativa como um nuançado Malcolm X, e Leslie Odom Jr. (do musical Hamilton) brilha como Sam Cooke — inclusive cantando! É nome certo no Oscar de melhor ator coadjuvante.
Aliás, a cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, marcada para 25 de abril, pode espelhar a quantidade e a qualidade das obras sobre negritude (ou com protagonismo negro) lançadas na temporada. Segundo a mais recente aposta da centenária revista Variety, publicada em 28 de janeiro, a lista dos 10 indicados a melhor filme deve contar com Destacamento Blood, A Voz Suprema do Blues, Uma Noite em Miami e Judas e o Messias Negro. Seus respectivos diretores — Spike Lee, George C. Wolfe, Regina King e Shaka King — disputam vaga entre os cinco concorrentes da categoria.
Nos principais prêmios de interpretação, devem aparecer Chadwick Boseman (A Voz Suprema do Blues), Delroy Lindo (Destacamento Blood) e Viola Davis (A Voz Suprema do Blues), com chances para Kingsley Ben-Adir, Nicole Beharie (Miss Juneteenth), Andra Day (The United States vs. Billie Holiday) e Zendaya (Malcolm & Marie, que estreia na Netflix em 5 de fevereiro). Para os Oscar de coadjuvante, além de Odom Jr., são candidatos Daniel Kaluuya (Judas e o Messias Negro), Chadwick Boseman (agora por Destacamento Blood), Glynn Turman (A Voz Suprema do Blues) e Dominique Fishback (Judas e o Messias Negro).