“Como um bastardo, órfão, filho de uma vadia, escocês, criado na miséria, em uma ilha do Caribe esquecida pela Providência, cresceu para se tornar um herói e um estudioso?”, questiona o vice-presidente Aaron Burr na abertura de Hamilton: An American Musical, que desembarcou em novembro no Brasil no catálogo da Disney+.
Com o mesmo espanto, ele poderia estar questionando como um musical de quase três horas sobre o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Alexander Hamilton (1755-1804), tornou-se um dos maiores sucessos da Broadway, indo muito além dos limites do Richard Rodgers Theater, seu lar em Nova York.
É uma pergunta que ronda os corredores do setor teatral há mais de cinco anos. Do elenco multirracial às canções de hip-hop, R&B e até baladas pop, qual é o apelo de Hamilton? O que pode explicar uma bilheteria de US$ 650 milhões, o segundo lugar do álbum na Billboard 200, 11 prêmios Tony (o Oscar do teatro americano), o Grammy de Melhor Álbum de Teatro Musical e o prêmio Pulitzer?
Casa Branca
Fenômeno desde o início, o musical começou sua trajetória de sucesso com uma performance viral de Lin-Manuel Miranda, criador, compositor e ator principal do espetáculo, durante o primeiro White House Poetry Jam. Era maio de 2009 e o primeiro presidente negro dos EUA havia sido eleito há menos de um ano.
“Estou empolgado por ter sido chamado pela Casa Branca nesta noite”, começa um nervoso Miranda, “porque, na verdade, estou trabalhando em um álbum conceitual sobre a vida de alguém que acho que incorpora o hip-hop: o Secretário do Tesouro Alexander Hamilton”.
Michelle e Barack Obama riem junto com o restante da plateia, mas Miranda está falando sério. Anos depois, com o sucesso do musical, o casal brincaria inúmeras vezes: quem está rindo agora? A verdade é que, desde a primeira performance de Hamilton, o público estava intrigado pela ideia. Se por um lado parecia ridículo, por outro Lin-Manuel parecia determinado o suficiente para tornar o show uma experiência única.
Public Theater
Hamilton chegou aos palcos seis anos mais tarde, em 2015, no Public Theater de Nova York. Longe de um álbum conceitual, o espetáculo estreou como um musical completo, com dois atos que cobriam os eventos de 1776 até 1804 — a Revolução Americana e os anos de formação da República.
O imigrante caribenho sem prospecto que chega ao posto de braço direito de George Washington é, de certa forma, o sonho americano em pessoa. Ele ainda vai além, levando o crédito por todo o sistema financeiro dos Estados Unidos. Antes, é claro, de destruir a própria carreira com um escândalo sexual.
E o hip-hop é justificado pela própria essência da história. Revolucionária, afrontosa, urgente. Hamilton, um escritor compulsivo, ganha e perde tudo justamente pelo poder de suas palavras. Parece, ao longo do musical, que ele nunca consegue rimar rápido o suficiente para acompanhar a própria mente ("Como você escreve como se você precisasse disso para sobreviver? Como você escreve a cada segundo de sua vida?", dizem alguns versos).
Mas há mais em Hamilton do que uma simples ode a uma figura histórica. Uma adaptação quase literal da biografia escrita por Ron Chernow, lançada no Brasil neste mês pela Intrínseca, o musical tem uma exatidão histórica impressionante, com canções que vão desde as discussões no gabinete de Washington sobre dívidas externas até a escolha da Capital dos EUA.
E ao tratar assuntos tão sérios, o espetáculo ainda traz um olhar sobre as próprias ideias que fundaram os Estados Unidos ("um lugar onde até mesmo imigrantes órfãos podem deixar sua marca e ascender", diz outro trecho). As contradições dos pais fundadores — donos de pessoas escravizadas, lutando por igualdade e independência — são colocadas sob os holofotes, ao mesmo tempo que o ideal de uma pátria forjada por bravura e liberdade é louvado.
A disparidade mais gritante no caso do próprio espetáculo, é claro, é o fato de que todos esses personagens, que eram na verdade homens brancos, são interpretados por latinos, negros e descendentes de asiáticos. O próprio Miranda é Hamilton, Leslie Odom Jr. interpreta Aaron Burr, Phillipa Soo faz papel de Eliza Hamilton, Renée Elise Goldsberry é Angelica Schuyler, Daveed Diggs interpreta o Marquês de Lafayette e Thomas Jefferson, e Christopher Jackson faz papel de George Washington.
Seria uma forma de aproximar o retrato da América de ontem, com a América de hoje, repetiu Lin-Manuel inúmeras vezes. Mais do que isso, no entanto, se Alexander Hamilton pode ser um rapper no palco, por que não um rapper porto-riquenho?
Intrinsecamente em sincronia com os ideais da administração Obama, período em que foi concebido, o musical de Lin-Manuel Miranda explora estes Estados Unidos não como eles são, nem como eles foram, mas como o país poderia e, principalmente, deveria ser.
Broadway
À boca pequena, Hamilton rapidamente se tornou um grande fenômeno, mesmo antes de desembarcar na Broadway. Enquanto ainda estava no teatro público, passaram pelos seus camarotes Robert De Niro, Julia Roberts, Paul McCartney, Tobey Maguire, Tom Hanks, Bill e Hillary Clinton, além da própria Michelle Obama, o que apenas aumentou o hype.
Com menos de 300 de lugares, o local simplesmente não teve como dar conta da venda de ingressos, de forma que conseguir uma entrada para o espetáculo se tornou símbolo de status — e motivo de piada. Quem não tinha os contatos, fundos ou chance para assistir ao musical, acabou se contentando com o álbum de estúdio.
E eis outra arma secreta de Hamilton. O disco, por si só, transformou-se na obra conceitual imaginada por Miranda um dia. Uma vez que a produção é quase completamente cantada, a história faz sentido mesmo sem a performance teatral. Assim, principalmente o público mais jovem, já conhecia cada verso do espetáculo sem nunca o ter assistido.
Mais do que isso: o título logo entrou em listas como a Viral 50 do Spotify, aumentando seu alcance. E como as canções pareciam mais com Notorious B.I.G., Mobb Deep e Destiny's Child do que uma canção do Fantasma da Ópera ou Les Misérables, o público de Hamilton seguiu crescendo.
Como resultado, mesmo quando o musical foi transferido para o Richard Rodgers Theater, com seus 1.380 lugares, os ingressos seguiram escassos. Iniciativas como o Ham4Ham, pequenas performances ao lado do teatro para quem estava na fila por ingressos mais baratos, sorteados diariamente, surgiram e logo se espalharam pela internet. Assim como o Hamilton Animatics, versões animadas do musical feitas por fãs e publicadas no YouTube.
A partir dai, o elenco original foi convidado para se apresentar na Casa Branca, performances do musical no Grammy e no Tony Awards também viralizaram, a companhia se expandiu com uma turnê pelos Estados Unidos e outra na Inglaterra. Hamilton, de repente, estava em todos os lugares.
Nem a pandemia foi capaz de parar a hamiltonmania. Quando os teatros fecharam, o musical partiu para o catálogo da Disney+, estreando no streaming em pleno 4 de julho. E, mais uma vez, o bastardo jovem, deslocado e faminto não perdeu sua chance.
Hamilton: An American Musical
- Disponível no catálogo da Disney+ (ainda sem previsão de legendas em português);
- Alexander Hamilton, biografia escrita por Ron Chernow, está à venda no Brasil. Editora Intrínseca, 896 páginas, R$ 99,90 (livro físico) e R$ 69,90 (e-book).