O último filme de Chadwick Boseman, A Voz Suprema do Blues, só intensifica a saudade deixada pelo protagonista de Pantera Negra (2018). Morto no final de agosto, aos 43 anos, em decorrência de um câncer colorretal, ele tem um desempenho vibrante e cortante na pele do trompetista Levee. Pelo filme americano que estreia nesta sexta-feira (18) na Netflix, surge como um forte candidato ao Oscar de melhor ator.
Não seria o primeiro prêmio póstumo na história da premiação. Já houve 16, como o de Heath Ledger, melhor coadjuvante como o Coringa de Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), ou o de Conrad Hall, pela fotografia de Estrada para Perdição (2002). Mas seria apenas o segundo na categoria de melhor ator — até agora, o único a vencer depois de morto foi Peter Finch, pelo âncora de um programa jornalístico de TV de Rede de Intrigas (1976).
Se confirmado no anúncio das indicações, em 15 de março, o nome de Boseman deve ter rivais de peso. Entre os mais cotados, estão Delroy Lindo (Destacamento Blood), Anthony Hopkins (The Father), Riz Ahmed (O Som do Silêncio), Steven Yeun (Minari) e Gary Oldman (Mank). Chadwick também pode aparecer na lista dos atores coadjuvantes, pelo Stormin' Norman de Destacamento Blood.
A força de A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey's Black Bottom Blues, no original) não reside somente no derradeiro papel do ator. No ano em que os Estados Unidos foram sacudidos pelo caso George Floyd — o homem negro sufocado até a morte por um policial branco —, racismo é um tema em evidência. Não importa que o filme se passe na Chicago de 1927 e que verse sobre o mundo da música: seus conflitos também refletem a questão racial dos dias de hoje e em diferentes esferas. Aposta-se que vai figurar entre os 10 indicados à principal estatueta dourada.
O longa-metragem é assinado por George C. Wolfe, diretor dos premiados espetáculos da Broadway Angels in America (1993) e Bring in 'da Noise/Bring in 'da Funk (1996) e realizador dos telefilmes Lackawanna Blues (2005) e A Vida Imortal de Henrietta Lacks (2017). Trata-se da adaptação, pelo ator Ruben Santiago-Hudson, de uma peça de 1984 escrita por August Wilson (1945-2005) — curiosamente, ele teve uma indicação póstuma ao Oscar, a de melhor roteiro adaptado por Um Limite Entre Nós (2016). Todos são negros, vale frisar, assim como o coprodutor Denzel Washington e o músico de jazz Branford Marsalis, que compôs a trilha. Na trama de A Voz Suprema do Blues, Wilson recriou os bastidores da gravação de Black Bottom, um dos sucessos da cantora Ma Rainey (1886-1939), considerada a mãe do blues, o gênero musical que os afro-americanos desenvolveram no extremo sul dos EUA.
A origem teatral fica patente no filme: há poucos personagens (menos de 10, sendo sete negros), há basicamente dois cenários (o estúdio de gravação e a sala onde os músicos da banda ensaiam) e há a preponderância do texto sobre a ação (embora haja algumas soluções visuais dignas de nota, como um descarte dos discos de vinil). Mas cada diálogo vale o, digamos, ingresso, e os atores saboreiam cada palavra na escalada das tensões.
O papel de Ma Rainey deve valer a Viola Davis sua quarta indicação ao Oscar — ela ganhou como atriz coadjuvante por Um Limite Entre Nós, concorreu na mesma categoria por Dúvida (2008) e brigou por melhor atriz com Histórias Cruzadas (2011). Viola, 55 anos, é daquelas estrelas que conseguem dizer muito só com o olhar. Em A Voz Suprema do Blues, ora transmite desejo, ora raiva, ora arrogância, ora cansaço. Mas ela também nos brinda com seu vozeirão, não apenas nos monólogos incisivos ou nos diálogos cheios de ironia e rispidez, mas também cantando, ela própria, as músicas da célebre artista.
Sua personagem vive um duplo atrito. Por um lado, impõe aos donos do estúdio — ambos brancos, importante destacar — que seu sobrinho, gago, participe da gravação, apresentando Ma Rainey no início da canção. Por outro, tem de lidar com as ambições de Levee, o mais jovem (30 e poucos anos) na banda completada pelo pianista Toledo (o veterano Glynn Turman, em ótima atuação), o guitarrista e trombonista Cutler (Colman Domingo), líder do quarteto, e o contrabaixista Slow Drag (Michael Potts). O trompetista encarnado por Chadwick Boseman quer que seja registrada a sua versão de Black Bottom, em um andamento mais rápido, mais ao gosto da audiência branca, segundo ele; e o músico também está arrastando a asa para perto de Dussie Mae (Taylour Paige), jovem dançarina por quem a cantora nutre um carinho mais do que especial.
O duelo não é direto, as estocadas envolvem os demais personagens, como se Ma e Levee reconhecessem, um no outro, um rival muito difícil de ser batido. No fundo, lutam contra o mesmo adversário: a opressão racial, a apropriação cultural, a exploração da mão de obra e do talento negros pela sociedade branca. Cada um tem sua própria tática de defesa e de ataque. Quando Levee explica a sua, esse é o momento "vale um Oscar" de Chadwick Boseman. De repente, o sorriso malicioso e o jeito apressado de falar dão lugar a um rosto crispado e uma voz mais cadenciada. O adulto sensualizador se transforma em um garotinho assustado. Somem os sonhos de sucesso pessoal, entram as dolorosas memórias coletivas. Com cerca de cinco minutos, o monólogo é pungente, cada frase é como uma faca a qual Levee gira na própria carne antes de exibir a lâmina ensanguentada para a audiência. O músico desnuda suas fragilidades, mas também deixa claro: eis um homem que não gosta que pisem nos seus sapatos.