Em 1951, uma visita feita por uma mulher americana pobre e negra ao Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos, mudaria para sempre o curso da historia das ciências biomédicas. Henrietta Lacks notara que sangrava fora de seu período menstrual, além de seguidamente sentir dores abdominais. Isso não era algo que podia comentar com seus parentes e amigos, mas ela sentia que algo estava muito errado. O médico que a atendeu na ala segregada para "pessoas de cor" observou durante o exame uma massa no colo do útero, que sangrava ao menor toque. Ele nunca havia visto um tumor como aquele, e jamais o esqueceria.
O médico, Howard Jones, trabalhava sob a chefia de Richard TeLinde, ambos na época envolvidos em um debate mundial sobre como diagnosticar o câncer cervical. Dez anos antes, um pesquisador grego, George Papanicolau, havia publicado um artigo mostrando que a coleta de células do colo do útero servia para fazer esse diagnóstico. Contudo, a maioria dos médicos não sabia ainda interpretar os testes corretamente, levando a tratamentos tragicamente inadequados. Em hospitais que realizavam pesquisa, como o Johns Hopkins, o time de Jones e TeLinde tentava, sem sucesso, cultivar células de útero de pacientes. Esses pacientes eram geralmente da ala pública, pobres, e suas células eram coletadas sem que soubessem. Jones coletou células do tumor de Henrietta, assim como da parte não afetada no útero. Para sua surpresa, enquanto as células saudáveis morreram, as coletadas do tumor multiplicavam-se desenfreadamente em cultura. Enquanto tivessem nutrientes, se amontoavam, cobrindo placas e placas de cultura. Nasceu assim o campo da biologia tumoral. Pela primeira vez, era possível estudar o que fazia uma célula normal transformar-se em uma célula tumoral.
Henrieta morreu devido ao tumor, mas suas células, transformadas em material de pesquisa, foram batizadas com a abreviatura HeLa e enviadas a todos os pesquisadores do mundo que quisessem estudar câncer. Essas células levaram ao desenvolvimento de uma indústria bilionária. Foram utilizadas para inúmeras descobertas sobre o câncer, como a da enzima telomerase, que basicamente é uma das responsáveis pela imortalidade das células tumorais, e foi tema de Prêmio Nobel em 2009. Mesmo descobertas não relacionadas a câncer foram feitas em células HeLa. A vacina da pólio desenvolvida por Jonas Salk foi multiplicada nas células de Henrietta.
Até hoje, células HeLa circulam em diferentes laboratórios do mundo, podendo ser compradas de empresas especializadas. A criação da linhagem de células HeLa foi provavelmente o principal evento biomédico dos últimos cem anos. Apesar de tudo, os descendentes de Henrietta, até recentemente, ignoravam o que havia acontecido com sua mãe e avó, e não tinham dinheiro para pagar suas contas de hospital. Essa historia foi contada de maneira magistral pela jornalista cientifica Rebecca Sloot no livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks (Companhia das Letras, 2011), e transformada em filme pela HBO, devendo estrear no dia 22 de abril. Assista ao filme, leia o livro, emocione-se e conheça o episódio que hoje é ensinado em sala de aula para cientistas no mundo inteiro, como exemplo do que não se deve fazer: interferir com um sujeito de pesquisa sem antes exaurir as maneiras de fazê-lo entender o procedimento, bem como o quanto é valiosa a sua participação. Enfim, Henrietta e sua família começam a receber justiça pelo presente inestimável que deram à humanidade. Que sua memória, como suas células, goze da imortalidade merecida.
* Cristina Bonorino escreve mensalmente no Caderno DOC.