Um post recomendando o documentário Emicida: AmarElo — É Tudo pra Ontem, que estreou neste mês de dezembro na Netflix, despertou os seguintes comentários de meus amigos nas redes sociais:
"Uma aula!"
"Uma joia rara."
"Bom pra encerrar este ano e fazer as pessoas pensarem sobre tudo!"
"Emicida é um poeta. Todos deveriam fechar os olhos e escutar o que ele tem a dizer."
"Transformador. Impactante. Fundamental."
"De uma importância gigantesca."
"Sei que vou chorar. Estou me preparando. Representa demais."
"Já vi duas vezes. E chorei o tempo todo nas duas."
São frases de homens e mulheres, brancos e negros, jovens e mães, heterossexuais e LGBT+, porto-alegrenses e pampianos, moradores da Zona Sul ou da Zona Norte com as mais variadas profissões.
Dirigido pelo estreante Fred Ouro Preto, com roteiro de Toni C. (biógrafo do rapper Sabotage e autor do documentário É Tudo Nosso! O Hip Hop Fazendo História), AmarElo parece ter um alcance universal. Isso é fruto — palavra escolhida para casar com o contexto da obra — da combinação entre o talento do paulistano Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, 35 anos, características próprias do rap e da cultura hip hop (como sua transversalidade e seu poder de ressignificação) e o timing de lançamento do filme. Que é, a um só tempo, reflexivo e emocional na sua tentativa de entender o país em que vivemos e apontar caminho para um futuro melhor — um caminho trilhado, impreterivelmente, pela união do povo negro, como o artista canta em Principia ("Tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis") e em Quem Tem um Amigo (Tem Tudo), e pelo combate ao racismo ("Eu não sou o alvo do racista, eu sou o pesadelo dele", afirma o rapper). E com a urgência referida no subtítulo: é tudo pra ontem.
O documentário consegue conjugar os bastidores de um show à história da luta negra no país. Ao lançar o disco AmarElo (vencedor do prêmio Grammy latino) no Theatro Municipal, em São Paulo, em novembro de 2019, Emicida percebeu o simbolismo da inédita ocupação, por artistas e espectadores negros, daquele espaço criado pela elite da cidade sob inspiração da Ópera de Paris, em 1911. A partir disso, propõe uma viagem no tempo. Vai desde a abolição tardia da escravidão no Brasil, em 1888, até o estabelecimento do rap, já no final do século 20, como o ponto de "conexão das classes operárias às ideias dos intelectuais pretos", como Emicida diz no documentário. Vai do arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811), ex-escravizado que ficou conhecido pela alcunha de Tebas, à vereadora Marielle Franco (1979-2018), assassinada em um crime ainda não solucionado. A jornada inclui uma parada no próprio Theatro Municipal, mais precisamente em suas escadarias — ou seja, do lado de fora —, onde, em 1978, surgiu o Movimento Negro Unido (MNU), em protesto contra a violência racial durante a ditadura militar.
Ao passear pela história brasileira, AmarElo promove o resgate de uma cultura condenada à periferia assim como aconteceu com a população negra, jogada dos centros das capitais para suas bordas. Emicida destaca o papel do samba como elemento identitário nacional, celebra artistas como a atriz Ruth de Souza e o baterista Wilson das Neves (de quem cita um aforismo que alude à união referida mais acima: "Um cigarro você quebra, um maço é mais difícil"), apresenta às novas gerações Lélia González (1935-1994), uma das pioneiras nas discussões sobre a relação entre gênero, classe e raça no mundo (o filme reproduz uma fala da filósofa afro-americana Angela Davis em sua passagem pelo Brasil, em 2019: "Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendi mais com Lélia do que vocês aprenderão comigo").
O dinamismo impede o documentário de resvalar para o didatismo. Com 90 minutos de duração, é um filme equilibrado e bem ritmado, dividido em três atos — Plantar, Regar e Colher, batizados em alusão à "faculdadezinha" que Emicida fez enquanto gravava o disco: uma horta. Ali, ao lidar com aranhas e cobras, ele diz que aprendeu como o medo empurra as pessoas a fazer o que não querem fazer, o que serve como uma metáfora sobre os impactos do racismo estrutural — explicitado na letra do rap Ismália: "Existe pele alva e pele alvo". Os depoimentos do rapper são intercalados por generosos excertos do show, imagens e entrevistas de arquivo (aparecem, entre outros, Wilson Simonal e Mestre Marçal), bastidores das gravações do disco (que incluem a participação da atriz Fernanda Montenegro e do pastor Henrique Vieira) e sequências de desenho animado.
Ao lançar mão desses recursos, AmarElo espelha o processo de produção do rap. Em cima de uma base — como o show no Municipal —, o desejo de expressão e a liberdade criativa fazem brotar as rimas e as associações (e nisso Emicida é um craque capaz de misturar na mesma letra Pantera Negra e Usain Bolt, o enxadrista russo Gary Kasparov e o jornalista brasileiro Maurício Kubrusly, Buda e Neruda). Outra marca da cultura hip hop é o uso de samplers, que permitem a ressignificação dos versos alheios agregados pelo MC. E aí entra um dos momentos mais comoventes de AmarElo, tanto no show quanto no documentário.
A canção que dá título ao disco conta com um sample de Sujeito de Sorte, gravada pelo cearense Belchior (1946-2017) em seu segundo álbum, Alucinação (1976). AmarElo usa o refrão: "Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro". Embora não fosse uma letra abertamente política, diferentemente de Apenas um Rapaz Latino-Americano e Como Nossos Pais, por exemplo, é difícil dissociar os versos do contexto da ditadura militar — os chamados "anos de chumbo" tinham se encerrado havia pouco, com o fim do mandato do presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), em 1974.
Quando Emicida lançou a música AmarElo e a apresentou no palco, o "ano passado" podia ser entendido como o ano da eleição, à Presidência, de Jair Bolsonaro, que, ao longo de sua carreira política, fez declarações consideradas racistas (em relação a negros e também a indígenas), machistas e homofóbicas. Surge novamente a transversalidade: para participar da gravação, o rapper chamou as cantoras Pabllo Vittar, que se define como drag queen, e Majur, que se identifica como uma pessoa trans não binária. Emicida justifica:
— Não acho que a gente está juntando as bandeiras. O que a gente está fazendo é tirar essa coisa nublada que faz com que as pessoas entendam como lutas separadas. Não se luta pela liberdade pela metade.
Agora que o documentário foi lançado, os versos de Belchior encampados por Emicida ganham um novo significado, que não anula os anteriores, mas agrega, como um rap faz. O "ano passado" já é 2020, o ano maldito da pandemia e do negacionismo, o ano do vírus que atingiu em cheio as populações mais pobres (e o rapper lembra isso no epílogo). O canto em voz altíssima de "Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro" é um canto de esperança e de catarse, seja coletiva, no Theatro Municipal, seja individual, na casa de cada um dos meus amigos.