Uma década separa Aos Olhos de Ernesto, em cartaz desde quinta-feira (9) nas plataformas Net Now, Vivo Play, Oi Play e Looke, do primeiro longa-metragem de Ana Luiza Azevedo, Antes que o Mundo Acabe (2009). O longo intervalo de tempo e a diferença gritante de protagonismo — colegiais do interior gaúcho na estreia, um uruguaio de 78 anos radicado em Porto Alegre no outro — sugerem que são dois filmes muito distintos. Mas, no fundo, ambos se inserem harmoniosamente na carreira da diretora e roteirista de 60 anos.
Premiado pela crítica na Mostra Internacional de São Paulo e pelo público no Festival de Punta del Este, Aos Olhos de Ernesto retoma os desafios e as delícias da velhice, o apagamento ou o apego às lembranças, os sonhos adormecidos ou pulsantes e o conflito de gerações. São temas que, com muito mais leveza do que amargura, Ana Luiza trabalhara em Antes que o Mundo Acabe (seis troféus em Paulínia), no curta-metragem Dona Cristina Perdeu a Memória (2002, Kikito de melhor direção e melhor direção de arte em Gramado), no telefilme Doce Mãe (2012, Emmy de melhor atriz internacional para Fernanda Montenegro) e no seriado homônimo (2014, também vencedor do Emmy internacional, desta vez de melhor comédia). O filme ecoa até mesmo o clássico Barbosa (1988), codirigido com Jorge Furtado. Sim, se nesse curta o personagem de Antônio Fagundes busca, por meio da ficção científica, fazer as pazes com um passado traumático — o da derrota do Brasil para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950 —, agora o protagonista encarnado por Jorge Bolani também se vê às voltas com a possibilidade de reatar um laço afetivo de sua mocidade e dissolver um travo amargo.
Bolani, para quem não ligou o nome do ator ao filme, interpretou o irmão profissional bem-sucedido de Whisky (2004), maravilhosa comédia dramática uruguaia laureada nos festivais de Cannes, Havana, Chicago, Tóquio e Gramado. A propósito, há uma aproximação estética e de tom entre esse longa e Aos Olhos de Ernesto — raras vezes Porto Alegre pareceu tão próxima de Montevidéu e de Buenos Aires, e talvez as cores e os sotaques platinos ajudem a explicar o encanto produzido por Ana Luiza (afinal, é comum invejarmos o cinema argentino, né?).
Por falar em inveja, Ernesto, o personagem de Bolani, tem um sentimento que remete aos hermanos em disputa de Whisky. Ele nunca esqueceu sua paixão da juventude, Lucia, que acabou escolhendo se casar com o melhor amigo dele, quase um irmão, Horácio, agora falecido. Ernesto também casou, mas ficou viúvo. Tem um filho, Ramiro (Júlio Andrade, que aproveita os poucos minutos em cena), e um netinho, Guillermo, mas ambos moram em São Paulo. Fotógrafo por ofício, está gradativamente perdendo a visão.
Ernesto, portanto, é um sujeito deslocado na vida, condição muito bem traduzida na sequência de abertura — que também alude à cegueira que ameaça o protagonista. Este surge em primeiro plano, enquanto ao fundo, sem foco e com som baixo, Ramiro mostra o apartamento para um eventual comprador. O pai não quer ir embora de lá, prefere continuar no autoexílio, cercado por seus livros e seus discos, jogando xadrez com o vizinho Javier (o argentino Jorge D'Elía), outro estrangeiro, saindo de casa apenas para pequenos passeios, para almoçar em um restaurante ou buscar sua mirrada e parcelada aposentadoria.
A Capital pela qual Ernesto circula, por sua vez, conecta o problema de visão do personagem com a carreira da cineasta. Ana Luiza é uma das sócias fundadoras da Casa de Cinema de Porto Alegre, a produtora de filmes como O Homem que Copiava (2003) e Meu Tio Matou um Cara (2004). Em ambos, ela foi assistente de direção de Jorge Furtado; em ambos, a geografia local foi embaralhada. No primeiro, por exemplo, o cenário é o 4º Distrito, mas a livraria em que o operador de xerox André trabalha fica no Bom Fim, e a loja onde sua paixão platônica é vendedora, na Cidade Baixa. No segundo, o ônibus da linha Anita passa na frente de um presídio longínquo.
As liberdades não foram tão grandes em Aos Olhos de Ernesto, coescrito por Ana Luiza e Furtado, mas o espectador acostumado aos endereços mostrados vai achar a Rua Alberto Torres, na Cidade Baixa, onde mora o protagonista, perto demais da praça situada em um triângulo formado pela Avenida Jerônimo de Ornelas e pelas ruas Vieira de Castro e Santa Teresinha, nas cercanias do Hospital de Clínicas. Vale repetir: o espectador acostumado aos endereços mostrados. Porque a Porto Alegre do filme não é a dos cartões-postais, nem grita a sua localização. Como sucede com Ernesto, pode não ser tão reconhecível à primeira vista; é uma cidade que requer um olhar mais íntimo.
Esse olhar íntimo é estendido por Ana Luiza ao cotidiano do seu personagem. A câmera demora-se em tarefas rotineiras, como o preparo do café da manhã ou o ritual dos remédios a tomar. O prolongamento das cenas certamente contribuiu para que o filme ultrapassasse as duas horas de duração. Talvez um pouquinho de corte e de elipses não fizessem mal. Mas, por outro lado, dar o tempo necessário para cada uma dessas ações também é um gesto de afeto para com a terceira idade.
A melancolia consciente e quase voluntária de Ernesto é rompida de modo fortuito: um esbarrão com a cuidadora de cães Bia (Gabriela Poester), 23 anos. É a partir daí que a trama se desenvolve. Bia, que não é exatamente confiável, passa a ser os olhos de Ernesto. Vai guiá-lo para um espaço público de reivindicações contemporâneas, em uma cena que, a princípio, parece desconectada na trama — aquela em que, em meio a poetas urbanos que falam sobre sobre violência contra transexuais e contra negros, o velho uruguaio vai declamar Por que Cantamos, escrito por seu conterrâneo Mario Benedetti (1920-2009) na época das ditaduras militares —, mas que, como disse Ana Luiza, adquire ressonância em um contexto, o atual, de "criminalização da arte e da cultura". Não deixa de ser, igualmente, um momento em que a juventude toma contato e valoriza os mais velhos, o passado, a memória.
Bia também será os olhos de Ernesto na correspondência com a agora viúva Lucia. As cartas que ele recebe e escreve constituem alguns dos momentos mais bonitos do filme. Há uma sobreposição de vozes na leitura e no ditado para os manuscritos de Bia, como na fricção entre nossos desejos e nossa razão.
A hora das missivas é a hora em que se dá o choque geracional. Mas é uma esgrima delicada, mais para um dueto de balé sem a dança (por coincidência ou não, os edifícios da Alberto Torres que servem de locação chamam-se Harmonia e Concórdia), ainda que a delicadeza e o naturalismo da interpretação de Jorge Bolani contrastem bastante com a atuação mais rude e não tão espontânea de Gabriela (suas falas parecem ensaiadas demais na comparação com as dele). É também a hora em que Aos Olhos de Ernesto permite-se, mais uma vez, uma ligação com duas obras anteriores da diretora. A comunicação epistolar remete a Antes que o Mundo Acabe — na novela original do escritor Marcelo Carneiro da Cunha, cerca de 80% da narrativa se dá pelas cartas trocadas entre pai e filho; filho este que se vê confrontado com as angústias da adolescência e com o súbito reaparecimento do pai que nunca conheceu, enquanto Ernesto vê-se confrontado pelas angústias da terceira idade e pelo súbito reaparecimento de um amor que nunca viveu de verdade.
Já a relação entre Ernesto e Bia faz lembrar daquela estabelecida, em Dona Cristina Perdeu a Memória, entre uma senhora de 80 anos e um guri de oito. Nesse curta-metragem, enquanto ele, Pedro, tenta passar de bicicleta sobre uma pontezinha, no quintal de sua casa, do outro lado da cerca ela, a Dona Cristina do título, apresenta, a cada dia, uma nova versão para sua própria história. Como Pedro, Bia também enfrenta obstáculos (amorosos, financeiros etc) no seu trajeto para a maturidade. Como Dona Cristina, Ernesto tem a chance de reinventar a própria história.