Em carta, uma amiga de Ernesto reflete: "Envelhecer é perder quem entende nossos chistes, nossos silêncios, até nossas ausências". Tendo passado por essas perdas, o ex-fotógrafo uruguaio convive com a solidão no seu apartamento escuro, em Porto Alegre. Contudo, um encontro inesperado lhe traz a oportunidade de se redescobrir. E de rejuvenescer.
Lançando um olhar terno e humanista sobre a terceira idade, Aos Olhos de Ernesto, filme dirigido pela gaúcha Ana Luiza Azevedo, chega nesta quinta-feira (17) às plataformas de streaming (Net Now, Vivo Play, Oi Play e Looke). Em alguns Estados, o longa também deve ter exibições em drive-in – por enquanto, o Rio Grande do Sul não está incluso.
Aos Olhos de Ernesto estava previsto para chegar aos cinemas em março, mas teve sua estreia suspensa por conta da pandemia de coronavírus. O longa ganhou o prêmio da crítica na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2019 e foi eleito, em fevereiro passado, o melhor filme pelo público no Festival Internacional de Cine de Punta del Este.
Ernesto é interpretado pelo ator uruguaio Jorge Bolani, de Whisky (2004). Aos 78 anos, o protagonista mora sozinho e enfrenta uma crescente cegueira, que o impede de ler. Viúvo, é pai de um único filho, Ramiro (Julio Andrade), que vive em São Paulo. A princípio, sua solidão lhe basta. A vida de Ernesto é ouvir discos, ir ao restaurante almoçar, buscar sua aposentadoria mirrada e conversar com o vizinho. No fundo, sabe que tem uma existência melancólica.
Até que surge a jovem Bia, interpretada por Gabriela Poester (de produções como Necrópolis, Paralelo 30 e Coisas que Porto Alegre Fala). A cuidadora de cães é ambígua em suas intenções, porém propicia um frescor para o cotidiano metódico de Ernesto. Logo, ela passa a ser os olhos do uruguaio: uma amiga que escreve e lê suas cartas, que o encoraja a sair da bolha de seu apartamento e também, quem sabe, a reencontrar um antigo amor. Ernesto, então, toma fôlego e sai da penumbra.
Ao mesmo tempo, Bia também pode representar um perigo para o idoso solitário. Suas atitudes despertam desconfiança. Em cena, há uma boa química entre Bolani e Gabriela explorando suas personas contrastantes.
Por que hablamos
Aos Olhos de Ernesto tem roteiro escrito por Ana Luiza em parceria com Jorge Furtado, seu sócio na Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora responsável pelo projeto. A inspiração para a história veio do pai do fotógrafo Fábio Del Re, com quem a cineasta trabalhou no seu longa de estreia, Antes que o Mundo Acabe (2009). O pai dele é o também fotógrafo italiano Luigi Del Re, que vivia em Porto Alegre.
— Luigi passava por um momento difícil da vida dele. Era muito autônomo e morava sozinho, só que estava ficando cego. Trocava cartas com a irmã, que morava na França. Ele não conseguia mais ler as cartas da irmã, nem escrever mais. Achei aquela história triste, mas também muito bonita — relata Ana.
A história de Luigi foi o pontapé inicial. Porém, o Ernesto do filme é do Uruguai. Ana destaca que decidiu trabalhar com o olhar do exilado em Porto Alegre, inspirada em casos de argentinos e uruguaios. Ernesto se comunica pelo portunhol característico desses estrangeiros, que misturam os dois idiomas com forte sotaque e seguem preservando com carinho a cultura do país natal – o protagonista cultiva livros, música, culinária e, é claro, o mate.
Dentre esses elementos de origem preservados, a obra do escritor e poeta uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) permeia o filme. Marca presença com o romance A Trégua e na catártica cena de declamação do poema Por que Cantamos, em um slam.
— O poema é lindo e foi feito em outra época, de ditadura, mas acho que também dialoga com o que estamos vivendo hoje, num momento de criminalização da arte e da cultura. Precisamos explicar por que a arte é importante, por que a cultura é importante, por que a gente precisa continuar cantando — reflete Ana.
A atuação segura e serena de Bolani é um dos destaques de Aos Olhos de Ernesto. Segundo a diretora, ela imaginava o personagem um pouco mais rígido ao escrever o roteiro. Porém, o ator trouxe uma suavidade interessante para Ernesto:
— Tu escreves e imaginas uma coisa e o ator toma conta do personagem e dá outra dimensão. Bolani fez um Ernesto fantástico, mais doce do que eu imaginava.
Sobre lançar o filme em plena pandemia, Ana comenta:
— Foi difícil. A gente faz o filme pensando e querendo que seja exibido em uma grande tela e na sala escura. Mas, infelizmente, com essa pandemia, não tem essa perspectiva. Deve levar muito tempo ainda para (o circuito de cinema) se restabelecer. O filme é um bom presente para as pessoas em meio à pandemia. Tem um público potencial do filme que não vai sair tão cedo de casa.