Uma das cineastas mais prestigiadas do Brasil, Laís Bodanzky irá receber o Troféu Eduardo Abelin no Festival de Cinema de Gramado deste ano, que começa no próximo dia 18. A homenagem é destinada a personalidades fundamentais para o cinema brasileiro. Ao longo de sua trajetória, a paulistana de 50 anos se destacou dirigindo filmes como Bicho de Sete Cabeças (2000), Chega de Saudade (2007), As Melhores Coisas do Mundo (2010) e Como Nossos Pais (2017), que recebeu seis Kikitos.
Desde o ano passado, é diretora-presidente da Spcine (empresa de cinema e audiovisual de São Paulo, iniciativa da Prefeitura de São Paulo com foco no desenvolvimento dos setores de cinema, TV, games e novas mídias). Em conversa com GZH, Laís analisou o cenário do cinema brasileiro em meio a pandemia e falou sobre a sua trajetória.
Neste mês, você vai receber o Troféu Eduardo Abelin, do Festival de Cinema de Gramado. O que significa para você esse reconhecimento?
Entendo como um estímulo para continuar minha carreira não só no sentido artístico, mas também de atuação política. Desde a faculdade, tive consciência que fazer cinema não é só conseguir recurso para realizar o filme, mas também pensar políticas cinematográficas como um todo. Sigo misturando esses dois lados. Esse reconhecimento vem na hora em que nós estamos vivendo um movimento tão interessante do audiovisual brasileiro, mas ao mesmo tempo que passa pela falta de reconhecimento por parte de um governo federal, que não liga ou defende nosso mercador interno do audiovisual. É uma contradição, pois nunca tivemos uma fartura e uma diversidade como temos agora. Me sinto parte dessa história, dessas conquistas, de forma indireta, por estar sempre pensando a política cinematográfica do nosso país. Receber esta homenagem, é como olhar para trás e perceber que faz sentido o que fiz (risos). É uma validação de uma forma de entrega na minha profissão.
Filha de pai cineasta (Jorge Bodanzky) e de uma mãe que era professora de história da arte, você cresceu em um ambiente artístico. Como descobriu que gostava de fazer cinema? Teve influência de seu pai?
Teve uma influência não explícita por parte do meu pai. Sempre o observei fazendo cinema e o acompanhei, e quando se vê alguém fazendo algo que gosta com paixão, você se apaixona também. É uma profissão muito charmosa e apaixonante, que permite brincar com imaginário e os sonhos. A minha sorte de ser filha de cineasta foi justamente não ter a ilusão, que muitas pessoas que vão trabalhar no audiovisual têm, de achar que tudo é incrível no cinema, de só ver o lado do tapete vermelho, prêmios e festas. E o que eu via com o meu pai era o trabalho, a demora com os projetos, as frustrações. Tinha a dimensão da produção menos romântica. Quando eu fiz essa escolha, fiz de forma muito consciente. Isso foi uma vantagem.
Sendo uma mulher cineasta, que tipo de empecilhos você já teve que enfrentar? Já teve sua autoridade questionada?
Isso é constante. O que acontece é que essa opressão do gênero feminino muitas vezes é feita de forma camuflada, que a mulher só vai perceber depois. É um mecanismo muito perverso. Às vezes você está em uma reunião e não te deixam falar. Às vezes, não reconhecem sua competência: por exemplo, você está pronta para ser uma líder de uma série, mas chamam um homem iniciante. Você fica debaixo daquele guarda-chuva. Sempre foi assim. Na última sexta (4), houve a reunião de assinatura dos protocolos de reabertura dos cinemas. Estavam presentes vários CEOs de exibidoras e todos eram homens. Eu era a única mulher na reunião. Depois, quando mandaram a foto, achei aquilo forte. Justificou eu ter aceitado o convite do Alê Youssef (ex-secretário de Cultura de São Paulo) para também ser uma CEO. Mas alguém tem que fazer o convite. As mulheres que se colocam no papel de liderança também não podem reproduzir certos comportamentos, que reproduzimos automaticamente. Esse modelo patriarcal, totalmente centrado na posição do homem branco nas posições de liderança, muitas vezes as mulheres por trás fazendo tudo.
Você volta a participar do Festival de Cinema de Gramado desta vez como diretora-presidente da Spcine. Após um ano e meio nesse posto, como tem sido a experiência?
Muito interessante. É preciso entender o que é política pública. Claro, você precisa de recursos, mas também pode atuar de várias formas, não só inserindo recursos, mas sim também colocando uma inteligência. Muitas ações não necessitam de recursos, basta estimular encontros e debates. A Spcine escreveu sua política afirmativa há um ano. Isso é uma atitude, uma visão contemporânea do audiovisual. Isso não tem a ver com recursos, tem a ver com uma postura, como uma provocação para o setor. É muito gratificante ver encontros e reuniões que colocamos pessoas que deveriam se conhecer a muito tempo e não se conhecem, aí trocam cartões. Isso gera desdobramentos. Isso é também fazer uma política pública. Servir de tradutor para os dois lados, para a prefeitura e para o setor audiovisual. Na pandemia, vimos a dificuldade que foi interromper filmagens de um dia para o outro. Acompanhar todo o suporte que estamos dando com a Lei Aldir Blanc. Entender também como se retomar as atividades, como se fortalecer. Lançaremos em breve o edital de atração de filmagens, que é o primeiro do Brasil num modelo internacional. É imensa a quantidade de ações que a SPCine olha e cuida, além de funcionar como observatório.
Você já comentou em entrevistas que 39 filmagens estavam em andamento em espaços públicos de São Paulo, mas tiveram que ser interrompidas por conta da pandemia. Em julho, saiu um decreto autorizando a prefeitura de São Paulo a retomar a concessão para filmagens e gravações em espaços públicos na capital paulista. Qual é a situação do momento? As filmagens estão sendo retomadas?
De fato, elas voltaram. A São Paulo Film Commission (orgão responsável pela realização de produções audiovisuais na capital paulista) retomou. O que temos de dados é que, neste momento, quem voltou é o mercado publicitário. O mercado de conteúdo ainda não. O mercado publicitário está voltando a filmar com cada vez mais força, não como era antes, mas está começando a aquecer. Como o mercador publicitário não precisa de muitas diárias, ele retoma num ritmo diferente.
E como você avalia a retomada das filmagens das produções cinematográficas?
Lenta. O impacto dos protocolos a serem adotados vai de 20% a 40% além de seu orçamento. As produtoras de conteúdo ainda estão vendo como vão resolver isso. Mesmo as empresas seguradoras não conseguiram fechar essa matemática de como você assegura o trabalhador em relação ao coronavírus. Tem um lugar de incertezas que não garante uma retomada neste segundo semestre. Vemos muitas delas apontando para o ano que vem. O setor já vinha de uma crise grande por conta do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), de não ter recursos liberados, de uma lentidão da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que ainda não está pacificado. Há várias camadas de assuntos para resolver, que não é só da pandemia, mas ainda há uma crise institucional da Ancine que impacta também. Temos um setor afetado. Profissionais que não estão nos sets de filmagem rodando, que estão com suas geladeiras vazias. Acredito que ano que vem deva haver um renascimento. O audiovisual brasileiro tem que se redescobrir.
Com a pandemia e a suspensão das atividades das salas de cinema, houve um crescimento exponencial das plataformas de streaming. A própria SPcine Play é um exemplo. E após a pandemia, as salas não devem enfrentar essa, digamos, “concorrência” cada vez mais solidificada?
Já era uma tendência, a pandemia só acelerou esse processo. Acho que vão sofrer um impacto. Não está claro ainda. É uma decisão de renegociação política do setor, de entender a importância dessa janela. Isso nunca vai acabar: assistir a um filme numa sala de cinema é uma experiência sensorial e coletiva. É um programa, uma diversão. Talvez essa experiência sofra com as adaptações. Não sei se todos vão conseguir sobreviver, se vão ter fôlego. O setor audiovisual nunca passou por uma situação tão radical como essa que está passando na pandemia. Mesmo abrindo a sala, não necessariamente o público vai entrar. A experiência em outros países mostra isso, como na França.
Como você mencionou, o setor audiovisual já experimentava tensões antes da pandemia, muito por conta de sua relação ao governo federal. Desde que assumiu, o governo Bolsonaro passou a questionar mecanismos de fomento e a criticar a atuação da Ancine. Entre outros episódios, vale citar a crise que a Cinemateca Brasileira atravessa, passando por um desmonte. Como você observa esses movimentos?
O audiovisual no país vai sobreviver de qualquer maneira, pois é muito forte. É muito difícil enterrar esse setor.
LAÍS BODANZKY
Nosso setor é muito importante do ponto de vista econômico e simbólico. Um governo que não compreende e não joga a favor não se beneficia dele. O investimento de países como a Coreia do Sul no setor é alto porque sabem que há retorno. Não só aquece o mercado interno, pois gera emprego e impostos, mas através do audiovisual você vende o imaginário de um país, atrai turista e vende produtos. É uma indústria que estimula outras indústrias. Muitos países entendem isso, mas o governo atual não entende. O governo acha que ele tem que fazer curadoria de filmes. Fazer política pública de audiovisual não é fazer curadoria, você tem que estimular a diversidade e a originalidade do que você tem no seu país. E o Brasil tem muita coisa interessante. Não enxergar isso como potencial econômico não me parece muito inteligente. Mas o audiovisual no país vai sobreviver de qualquer maneira, pois é muito forte. É muito difícil enterrar esse setor. A economia fala mais alto do que um desejo individualista ou essa visão pequena e tacanha de uma censura. Na hora que você filtra e direciona, isso se chama censura. Política pública não é isso.
Ano passado, o governo Bolsonaro suspendeu edital com séries LGBT+ para TVs públicas. Você teme que a censura atinja a produção audiovisual no Brasil?
Sempre. Com esse nosso governo, já se comprovou que tudo é possível. Temos que ficar sempre em estado de alerta para que isso não aconteça. Temos que lembrar o tempo inteiro da constituição, do que nos é de direito. Não dá para amolecer.
Nos últimos tempos, alguns grupos têm demonstrado hostilidade aos artistas no Brasil. E também criticam as leis de incentivo. Como você percebe esse fenômeno?
É importante lembrar que os incentivos são realizados em várias áreas da economia do nosso país. Não é uma exclusividade da cultura. Aliás, os recursos para incentivo para a cultura perto de outros setores é muito pequeno. Só que a cultura faz muito barulho, pois aparece. Também traz um retorno imenso. A cultura incomoda porque nela há o espaço do pensador, que busca algo novo. Tudo que é diferente incomoda o que já estabelecido. Este governo tem medo de tudo que é novo e pensa, por isso esses ataques à educação, ciência e cultura. O audiovisual é indústria. Tem uma parte que utiliza recursos públicos e tem uma parte que não. É um mix. Assim como é nos Estados Unidos. Uma coisa não exclui a outra. Não deve acabar com uma coisa e falar “deixa o livre mercado, que ele vai funcionar”. Não, pois o livre mercado vai trazer um tipo de formato só, menos ousado. Nessa indústria, você precisa ter as duas pontas.
Antes da pandemia, o cinema brasileiro vivia um bom momento por conta de suas produções com reconhecimento internacional, como Bacurau e A Vida Invisível. O que contribui para esse prestígio?
Fruto de anos de uma política pública cinematográfica que teve continuidade. Tudo que tem continuidade, além de troca e escuta, traz retorno. O setor audiovisual amadureceu muito desde o surgimento da Ancine (2001). Na hora que você tem um número maior de produções, maiores são as chances de obter sucesso com elas. Por isso, um número expressivo de filmes brasileiros ocuparam os festivais do mundo. Tudo é proporcional: quanto mais você produz, mais as chances de achar pérolas ali dentro.
Em seu discurso no Festival de Cinema de Gramado, em 2017, você chamou atenção que há poucas mulheres dirigindo filmes no país, trazendo para reflexão o dado de que 15% da indústria do audiovisual do roteiro e da direção são formados por mulheres. E o número é ainda menor para mulheres negras. Por onde passam as políticas para aumentar essa diversidade e representatividade?
Isso é feito com tomadas de consciência. Não acontece por acaso. Política pública serve para isso. Na SPcine, nossos editais são pautados com política afirmativa: um júri tem que ser composto por diversidade de gênero e raça, e os projetos têm uma pontuação prévia que leva consideração a diversidade nos cargos de chefia. Então, você vai estimulando e botando lente para essas profissões que têm essa característica no seu DNA. Essa é uma forma indireta de mudar o retrato do nosso audiovisual.
Seu primeiro filme, Bicho de Sete Cabeças, completa 20 anos em 2020. Como esse longa envelheceu para você?
Um filme envelhece de várias formas. Às vezes ficando velho mesmo, depois envelhece ficando superjovem. Bicho já envelheceu de várias formas para mim (risos). Acho que varia muito por conta do meu estado de espírito enquanto o revejo. O que mais gosto de saber sobre o Bicho é que 20 anos depois ainda tem gente assistindo e se deixando influenciar por esse trabalho. Isso que é bacana nesta profissão: você deixar uma obra, que faz sentido por si só para os outros. Vira um documento que viaja pela máquina do tempo. E o Bicho ainda está aí, ainda é uma referência na luta antimanicomial.
A quantas anda a produção de A Viagem de Pedro, filme sobre Dom Pedro I, com Cauã Reymond no papel do imperador?
Está quase nos "finalmentes", falta uma parte de acabamento. Um ou outro detalhezinho de corte, mas logo ele chega (risos).
A Viagem de Pedro estreia ano que vem?
Sim.
Que recorte você buscou para esse retrato do Dom Pedro I?
Olha, não é um filme para aquele estudante que “ai, para entender sobre tal episódio do primeiro império no Brasil tem que assistir a esse longa”. Não, não assista (risos).
Não é filme para estudar para o Enem?
Não, definitivamente (risos). Já exibi um corte do filme para algumas pessoas opinarem, e elas costumam comentar que saem do filme com vontade de pesquisar sobre esse período histórico. Acho que é mais um provocador para te criar curiosidade e ir atrás das informações objetivas. Não é um livro histórico. O filme humaniza aquelas pessoas que romantizamos nos livros de história: um rei que parece que não sofre. O filme mostra o Dom Pedro I diferente do imaginário daquele homem todo consciente e poderoso. Ele aparece doente. A intenção é desconstruir esse imaginário, fragilizar as personagens daquela época. Como somos todos nós, seres frágeis. O recorte do filme é o retorno do Dom Pedro I para Europa, se passa em uma viagem de barco. É um momento de reflexão interna do ex-imperador.