Estou Pensando em Acabar com Tudo, lançado há poucos dias pela Netflix, é um filme de Charlie Kaufman. Para quem acompanha a carreira do roteirista vencedor do Oscar por Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), indicado por Quero Ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002) e diretor de Sinédoque, Nova York (2008) e Anomalisa (2015, concorrente à estatueta dourada de melhor animação), esse aviso é suficiente. Sabemos que vamos assistir a uma obra desafiadora, que propõe um passeio pelos labirintos da memória, que reflete sobre como o conceito de identidade é instável e sobre como, não raro, agimos como personagens, que lança um olhar surreal para coisas cotidianas, que faz uso de digressões e artificialismos para revelar o íntimo e a, digamos, verdade, que pinta os relacionamentos com uma mistura inusitada de comédia romântica e terror.
Entretanto, mesmo o público habituado aos filmes escritos ou dirigidos por esse nova-iorquino de 61 anos tem esbarrado em alguns enigmas para fechar o quebra-cabeças de Estou Pensando em Acabar com Tudo. Dito isso, chega a ser esperado que espectadores desavisados desistam de embarcar no carro em que viajam os dois personagens principais. Em um grupo do Facebook sobre filmes e séries da Netflix, acumulam-se posts do tipo "Não entendi nada", "Muito chato", "Desperdício de tempo" (a propósito, são duas horas e 14 minutos). Mas também já apareceram comentários como "Achei confuso, procurei explicações sobre o filme e tudo ficou mais claro. Vou assistir mais uma vez".
Gosto de filmes assim, como Midsommar, O Farol e Estou Pensando em Acabar com Tudo, que instigam, estimulam a rever, a pensar, a interpretar, a pesquisar — em suma, a dialogar, consigo mesmo ou com os outros. Sobretudo quando as charadas não se encerram nelas próprias, ou seja, quando os mistérios nos fazem refletir sobre temas importantes. O próprio Charlie Kaufman, ainda que de forma relutante, conversou com o site IndieWire sobre seu longa-metragem, que é baseado em um romance homônimo escrito pelo canadense Iain Reid (publicado no Brasil pela Fábrica231). Contou sobre referências, confirmou especulações e até concedeu explicações. Nessa mesma entrevista, porém, o cineasta mostra-se desconfortável de falar sobre certos pontos, como, por exemplo, a citação explícita - mas não aparente para todo mundo (inclusive para mim) - de Uma Mente Brilhante (2001), ganhador do Oscar de melhor filme. É que Kaufman é partidário das obras abertas — "Eu deixo o público ter suas experiências e realmente apoio a interpretação de qualquer pessoa", disse.
Então, para quem quiser dialogar sobre Estou Pensando em Acabar com Tudo ou não se importa com spoilers, aqui vão duas leituras possíveis, combinada com soluções encontradas em outras leituras, feitas por pessoas mais perspicazes do que eu.
A sinopse do filme até que parece simples: Lucy (em uma atuação cheia de nuances mas também de energia da irlandesa Jessie Buckley, a Lyudmilla da minissérie Chernobyl) está viajando de carro com o namorado, Jake (o americano Jesse Plemons, dos seriados Friday Night Lights, Breaking Bad e Fargo), para uma zona rural coberta de neve, onde conhecerá os pais dele - encarnados por David Thewlis e pela sempre cativante Toni Collette. Lucy, a protagonista, nossos olhos e a voz dos monólogos interiores do filme, está, como o título sugere, pensando em acabar o namoro:
— Jake é um cara legal, mas isso não vai dar em nada. Já sei disso há um tempo. Talvez seja da natureza humana ir em frente mesmo sabendo disso.
Por isso, a jornada é pontuada por longos papos sobre a finitude do amor, a inevitabilidade da morte, a ilusão da juventude.
De vez em quando, Kaufman corta a cena para focar o velho faxineiro de uma escola (encarnado por Guy Boyd). Quem é ele? Qual sua ligação com o casal?
A trama torna-se mais intrigante quando entramos na casa dos pais de Jake, que ora aparecem de cabelos brancos, ora são vistos mais joviais — e sem que isso desperte estranheza na namorada do filho.
Nesse ponto, já se pode intuir que a casa é como a memória de Jake, onde o tempo não corre como no mundo exterior e onde há um lugar proibido para Lucy: o porão, que podemos enxergar como o subconsciente. Se ela entrar lá, virão à tona os segredos dos quais Charlie Kaufman espalhou pistas desde o comecinho do filme: o faxineiro é Jake (vide os uniformes na máquina de lavar instalada no porão), e o que estamos acompanhando são lembranças e fantasias dele. Daí a opção de filmar com um formato de tela mais quadrado do que retangular, aproximando Estou Pensando em Acabar com Tudo do teatro, ou seja, da encenação — além de conferir um caráter claustrofóbico do qual falaremos mais adiante.
Jake, o faxineiro velho, enquanto tem ideações de morte (eis o sentido oculto do título), rememora e reimagina fatos de sua vida à base da abundância de filmes, livros e musicais que já consumiu. O ápice é a entrega claramente delirante (é só reparar no cenário de fundo, do musical Oklahoma!, e na maquiagem exagerada que envelhece atores e figurantes) de um Prêmio Nobel — a glória que ele não pôde alcançar, talvez por gastado boa parte de sua existência cuidando dos pais, talvez porque seu conhecimento enciclopédico sobre o poeta William Wordsworth, o gânglio trigêmeo ou os sorvetes da fictícia Tulsey Town simplesmente nunca foram suficientes.
Antes dessa cerimônia, Charlie Kaufman nos brinda com um daquelas surpresas sublimes: um número de dança contemporânea no qual surgem versões remoçadas de Jake, de Lucy e do faxineiro. Dá-se um duelo entre o Jake idealizado e o Jake real, aquele que, sem poder levar adiante suas ambições da juventude, tornou-se guardião de uma escola, o lugar onde ainda não somos adultos, onde todos os sonhos ainda estão pela frente.
Jake, Jake, Jake. Aos poucos, descobrimos que fomos enganados desde o princípio. Lucy é a falsa narradora, a falsa protagonista. Tanto que às vezes é chamada por outros nomes, como Louise ou Lucía, e sua atividade muda: estudante de neurologia, aspirante a poeta, garçonete, física. Ela é uma invenção de Jake, que no começo da viagem até parece ouvir os pensamentos dela.
Lucy é uma mulher à mercê de três homens: o escritor Iain Reid, o diretor Charlie Kaufman e o personagem Jake. Essa condição já basta para abrirmos a segunda leitura, a de Estou Pensando em Acabar com Tudo como uma alegoria sobre a cultura do machismo e sobre os relacionamentos abusivos. Nem o repórter nem o cineasta tocaram nesse assunto na tal entrevista para a IndieWire, mas Kaufman disse que apoia qualquer interpretação, lembram?
Bem, Lucy está sempre dizendo que não pode voltar muito tarde da visita aos pais de Jake, mas ele está sempre dando um jeito de postergar esse retorno.
Ele não é um sujeito agressivo, mas certamente é possessivo — sua última fala no filme é um verso da canção Lonely Room, do musical Oklahoma!: "Get me a woman to call my own!", consiga uma mulher para chamar de minha. Lucy reconhece que está "presa" — noção reforçada pelo formato restrito de tela e pelos cenários fechados: o interior do carro, a casa dos pais de Jake, o corredor da escola.
— As pessoas mantêm relacionamentos nocivos por ser mais fácil. Física básica: um corpo em movimento tende a ficar em movimento — ela reflete.
É Lucy, também, quem repreende o namorado quando ele cita a antiga canção Baby It's Cold Outside, cuja letra pode ser interpretada como apologia do abuso: uma mulher quer ir embora da casa de um homem, mas ele insiste que ela fique com a desculpa de que "faz frio lá fora". Os versos também aludem à possibilidade de o sujeito ter dopado a parceira para tirar vantagem disso.
Mais adiante, já no retorno, Lucy cede aos caprichos de Jake e os dois param para comprar geladinhos na sorveteria Tulsey Town. A certa altura, o namorado deixa-a sozinha no carro, com frio e, por que não dizer, em perigo. Quando ela resolve ir atrás dele, percebe na lixeira do colégio uma quantidade enorme de geladinhos descartados — como se fossem um símbolo de uma história triste que se repete, que se perpetua.
É o "risco ocupacional de ser mulher", como a personagem define ao descrever uma cena típica de qualquer bar. Uma mulher torna-se alvo do assédio de um homem, que fica a encarando constantemente, acintosamente. A saída para esse constrangimento, diz Lucy, acaba sendo um "sim", que leva a outro e mais outro "sim". A ironia perversa, finaliza a personagem, é que uma mulher só não é acossada por um homem quando está na companhia de outro homem.