“Estávamos casados havia pouco tempo. Ainda andávamos na rua de mãos dadas, mesmo quando estávamos nas lojas. Sempre juntos. Eu dizia a ele ‘eu te amo’. Mas ainda não sabia o quanto o amava.”
Começa assim o devastador depoimento de Ludmila Ignátienko para o livro Vozes de Tchernóbil – A história oral do desastre nuclear (Companhia das Letras, 2016), da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch. Ludmila é viúva do bombeiro Vassili Ignátienko, uma das primeiras vítimas do desastre nuclear de 1986, e foi uma das poucas mulheres que conseguiram acompanhar o marido no hospital durante os dias de agonia que antecederam sua morte inevitável. Ludmila e Vassili são dois dos personagens reais incluídos na trama da minissérie em cinco capítulos Chernobyl, exibida até a última sexta-feira pelo canal por assinatura HBO e desde já um dos grandes acontecimentos da televisão mundial em 2019.
Na minissérie, a história do jovem casal ilustra um dos muitos aspectos trágicos do maior acidente nuclear da História: a impossibilidade de abraçar ou beijar as pessoas que estavam morrendo ou mesmo escolher o lugar em que elas seriam enterradas. A radiação era uma ameaça não apenas invisível, mas difícil de explicar às famílias das áreas contaminadas. Como convencer uma mãe a não abraçar um filho? Uma mulher a não aliviar o sofrimento do marido? Um doente a recusar um carinho?
A radiação, porém, não é o único vilão insidioso dessa história. A mão invisível da burocracia soviética, sustentada durante décadas sobre o medo e a opressão do povo, opera o tempo todo nos bastidores, colocando seus próprios interesses acima de tudo. Nada ilustra melhor os motivos que levariam o regime ao colapso, apenas cinco anos depois, do que todas as trapalhadas e decisões equivocadas tomadas imediatamente antes e após o acidente.
Trinta e três anos e milhares de vítimas depois, Chernobyl permanece como uma tragédia sem epílogo. Não acaba quando os bombeiros apagam o fogo na usina nuclear, quando os supostos responsáveis são julgados ou mesmo quando o regime soviético desaba. As mortes em consequência da radiação continuam, embora os números exatos não sejam conhecidos. O livro de Svetlana Aleksiévitch, de 1997, e a minissérie da HBO apenas nos ajudam a dimensionar o tamanho do estrago – e a não deixar que suas vítimas e heróis caiam no esquecimento.
Em tempos de ataques contra a ciência e de negação do aquecimento global, sempre é bom lembrar que alguns erros não têm conserto. A certa altura do livro de Svetlana Aleksiévitch, um homem que viveu o horror da Segunda Guerra na infância conta que sempre acreditou que o acontecimento mais terrível de sua vida havia ficado no passado. Até Chernobyl, achava que nada pior poderia acontecer a ele e sua família. Estava errado: “O passado já não me protege. Não me tranquiliza. Não dá respostas. O futuro me arruína”.