
Rever Entre Facas e Segredos, no Amazon Prime Video, me fez rever minha posição sobre filmes dublados.
Antes de ser pai, só assistia aos desenhos animados da Disney se fossem legendados. Queria ouvir o elenco americano, afinal, muitas vezes os personagens eram literalmente desenhados de acordo com a personalidade e a voz dos atores. Quando a Helena nasceu, precisei, de imediato, adquirir uma tolerância às versões dubladas. Incluindo de filmes com gente de verdade.
Agora que ela e a mana, a Aurora, já estão mais crescidas, temos assistido a filmes mais maduros. Mas ainda dublados. É um exercício de paciência, um troço zen diante de vozes que não combinam com os atores, ou dublagens abafadas, ou com eco injustificável, ou vozes monocórdicas, ou um tom que não coaduna com a cena, ou então com aquela explosão no volume do som quando entra a música...
Pois bem: a turma que trabalhou em Entre Facas e Segredos deu um show (e a qualidade técnica do som, bem equalizado, também merece elogios). Fui cativado desde os primeiros diálogos desta comédia policial escrita e dirigida por Rian Johnson (o mesmo de Looper: Assassinos do Futuro e Stars Wars: Os Últimos Jedi), que concorreu ao Oscar de melhor roteiro original. E digo isso com a experiência de quem já havia assistido no cinema, em cópia legendada. Digo mais: a versão dublada melhorou o filme.
É que estado de espírito influi na percepção e na apreciação. Naquele dia de 2019 em que fui ao cinema, eu recém havia saído da Redação e estava cansado para acompanhar uma trama que exige atenção aos incontáveis diálogos, aos vários desvios, aos preciosos detalhes. Ontem, já descansado do trabalho, tendo a Bia e as gurias ao lado e sem a obrigação de ler legendas, foi quase como se eu estivesse vendo o filme pela primeira vez.
A propósito das crianças: eis um raro mistério policial para ser visto em família. Não exagera na violência, não apela para o sexo e, tirando uma piadinha sobre maconha, não abusa das drogas, lícitas ou não. Parece mesmo uma adaptação moderna dos livros da inglesa Agatha Christie (1890-1976), bem-humorada e temperada por crítica social.

Há um crime, claro – ou não. O ponto de partida, em uma mansão tão sinistra quanto brega, é a descoberta do corpo de Harlan Thrombey (Christopher Plummer), um famoso e milionário escritor de romances policiais, na manhã seguinte à comemoração de seus 85 anos. Tudo aponta para suicídio, mas o detetive particular Benoit Blanc (Daniel Craig, o 007), contratado por um cliente anônimo, logo vai perceber que todos na casa – dos filhos aos netos, do genro à nora, passando pelos empregados – tinham motivos para querer Harlan morto.
Descobrimos isso em uma sequência magistral, nos primeiros minutos de Entre Facas e Segredos. Sentado em uma poltrona ao fundo, Blanc observa dois policiais interrogarem os familiares do defunto, como a filha, Linda (Jamie Lee Curtis), e seu marido, Richard (Don Johnson), o filho, Walter (Michael Shannon), o neto playboy, Ransom (Chris Evans, o Capitão América da franquia Marvel), e a nora que ficou pela mansão após a morte do marido, Joni (Toni Collette). Cada um conta sua versão dos fatos, mas os flashbacks mostram uma história diferente.

É aí que o elenco de dubladores mostra que estudou muito bem o filme. Com uma sincronicidade impressionante, eles realmente encarnam os personagens e transmitem as nuances de interpretação. Fizeram valer sua experiência. Carlos Campanile, por exemplo, que dubla Harlan, tem 79 anos – entre seus créditos mais recentes, está o Jay Pritchett do seriado Modern Family. Cecília Lemes, que faz Linda, completou 60 em abril. Garcia Júnior, 53, o Benoit Blanc, é conhecido por ser a voz de Arnold Schwarzenegger no Brasil e emprestou seu talento para o mesmo Daniel Craig em três filmes de James Bond. Adriana Pissardini, 46, a Joni, já ganhou um prêmio pelo conjunto da obra.
Guiado por suas vozes, foi mais fácil não se perder no labirinto narrativo engendrado por Rian Johnson, que a todo instante indica novos caminhos para a solução do enigma, apresenta novos pontos de vista, revisita cenas e cenários. O bom é que o diretor e roteirista não se contentou em oferecer apenas um jogo de detetive: entretenimento divertido e sofisticado, Entre Facas e Segredos também critica aspectos sociopolíticos dos Estados Unidos. Os Thrombey, todos brancos, simbolizam os americanos refratários aos imigrantes – representados por Marta (a cubana Ana de Armas, de Blade Runner 2049, dublada por Tatiane Keplmair, a voz nacional da Hannah Montana), a enfermeira do escritor. Exploram-na, desconfiam e, ao mesmo tempo, não dão valor a dela, demonstrando como arrogância rima com ignorância: uma hora dizem que a família de Marta veio do Equador, outra hora, do Paraguai, depois, do Uruguai, e até a chamam de brasileira. Carregam às costas a faca da ambição, pois só têm olhos para o dinheiro de Harlan, enquanto ela – o diretor não faz segredo – carrega no peito a bússola moral do filme, pois é puro coração.