Uma atriz decadente que vive às turras com a mãe e com a filha é a personagem principal de Malu (2024), filme escrito e dirigido por Pedro Freire que estreia nesta quinta (21) em Porto Alegre, com apenas duas sessões diárias: às 15h na Cinemateca Capitólio e às 19h no CineBancários. Na segunda-feira (25), às 19h, na Capitólio, haverá exibição comentada pelo cineasta e por uma das integrantes do elenco, Carol Duarte, de A Vida Invisível (2019). Vale reservar um espaço na agenda, porque é um dos melhores do ano.
Trata-se do primeiro longa-metragem do paulistano Freire, 44 anos, que antes fez cinco curtas, como O teu Sorriso (2009), vencedor do Kikito de melhor atriz (para Juliana Carneiro da Cunha, também presente em Malu) e do prêmio da crítica no Festival de Gramado, e Depois da Festa (2018), e dirigiu episódios da série Detetives do Prédio Azul, em 2013, e capítulos da novela Meu Pedacinho de Chão, em 2014.
Malu foi lançado mundialmente no Festival de Sundance, nos EUA, em janeiro, quando o crítico Carlos Aguilar, na Variety, definiu como "elétrica e monstruosa" a grande atuação de Yara de Novaes (vista antes em Depois a Louca Sou Eu) na pele de uma protagonista tão detestável quanto adorável. No Festival do Rio, em outubro, conquistou cinco troféus Redentor: melhor longa de ficção (junto com Baby, de Marcelo Caetano), roteiro, atriz (Yara de Novaes) e atriz coadjuvante (prêmio duplo e merecidíssimo para Carol Duarte e Juliana Carneiro da Cunha).
A trama é baseada na vida da atriz paulista Malu Rocha, nome artístico de Maria de Lourdes Carvalho Carneiro (1947-2013), que no teatro trabalhou com José Celso Martinez Corrêa e Plínio Marcos, no cinema atuou em O Crime do Zé Bigorna (1977) e Bandido: Fúria do Sexo (1979) e na TV apareceu em novelas como Eu Prometo (1983) e Amor e Ódio (2001-2002). Pedro Freire é filho do casamento dela com o ator Herson Capri. "Cerca de 80% do filme é calcado no que aconteceu. Meu melhor amigo, quando viu, disse que era quase um documentário", contou o diretor em entrevista ao jornalista Ricardo Ferreira, em O Globo.
O processo de escrita do roteiro levou cinco anos, tempo em que Freire conseguiu separar, nas suas palavras, o que era assunto para a conversa com a psicanalista e o que era de interesse para o público. Na ficção, a personagem Joana, interpretada por Carol Duarte, é um alter ego seu e de sua irmã, a atriz Isadora Ferrite, filha do casamento de Malu com o ator Zanoni Ferrite.
O filme se concentra em um período de ostracismo e aperto financeiro de Malu. Ambientado nos anos 1990, se passa quase todo em uma casa precária da zona oeste do Rio que a atriz sonhava transformar em um centro cultural, construindo um pequeno teatro acima do teto e abrindo uma loja de roupas e um café chamado Larica. Ela compartilha o lar com a mãe, dona Lili (papel de Juliana Carneiro da Cunha), e recebe a visita da filha, Joana, que seguiu a carreira artística de Malu e vem de uma temporada nos palcos de Paris.
Dá-se um choque violento — até fisicamente — de gerações, de personalidades, de ambições e de frustrações. Cada refeição familiar é como uma bomba-relógio que pode ser detonada por algo simples, tipo a presença de alho na comida.
Malu, que era uma jovem durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, é a transgressora do trio, a revolucionária sonhadora movida a maconha. Dona Lili, conservadora, chega a convocar um padre para tentar ajudar a filha. A protagonista senta-se ao lado do pároco no sofá e reage sem dó:
— Meu amigo, eu sempre ouvi dizer que comunista come criancinha. Mas eu descobri muito cedo na vida que quem come criancinha mesmo é padre.
Se a relação de Malu com a mãe é complicada, a dela com a filha é complicadíssima. Joana reclama do passado de negligência ("Passei a minha infância comendo arroz com salsicha porque a revolucionária não podia cozinhar, porque cozinhar era coisa de dona de casa") e acusa a mãe de abuso psicológico:
— Tudo o que você me falou, tudo o que você me fez, você fodeu com a minha cabeça!
Por sua vez, Malu nitidamente tem inveja do prestígio conquistado pela filha. Quando Joana lê uma crítica publicada na imprensa francesa, dá poucos ouvidos.
Apesar de todos os espinhos, há também carinho entre as três personagens. Na verdade, muitos dos conflitos nascem de um amor genuíno, de uma preocupação sincera. Brigas e rancores não anulam a possibilidade do abraço e da reconciliação — mesmo que pela via do sofrimento, mesmo que com ressalvas. Malu, o filme, ilustra o turbilhão emocional das relações familiares quando atravessadas pela passagem do tempo, com cada geração tendo de lidar com os diferentes ideais e valores e as diferentes dores e delícias da anterior e da seguinte.
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