Para festejar os 40 anos de carreira cinematográfica de Selton Mello, 50, a MUBI lançou uma coleção com seis filmes estrelados ou assinados pelo ator e diretor: Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho, O Cheiro do Ralo (2006), de Heitor Dhalia, A Erva do Rato (2008), de Júlio Bressane, Uma História de Amor e Fúria (2013), de Luiz Bolognesi, Feliz Natal (2008) e O Palhaço (2011), ambos do próprio Selton.
Convém correr: dois desses títulos só ficarão em exibição por mais 11 dias, a contar desta terça-feira (12). Um é O Cheiro do Ralo, adaptação de um romance de Lourenço Mutarelli. O outro, Lavoura Arcaica, é a versão de um clássico da literatura nacional dos anos 1970, escrito por Raduan Nassar.
Na trama ambientada no Brasil da década de 1940, o personagem de Selton, André, é um jovem que foge de casa. Seus motivos são vários: as exigências e as limitações da vida rural, o pai autoritário e moralista (Raul Cortez), a relação incestuosa com a mãe (Juliana Carneiro da Cunha), a paixão pela irmã, Ana (Simone Spoladore). Anos depois, procurado por um dos irmãos (Leonardo Medeiros), ele retorna, para quebrar definitivamente os alicerces da família.
Belíssimo, intenso e provocativo, pontuado por longos monólogos e também por cenas não verbais, Lavoura Arcaica ganhou seis Candangos no Festival de Brasília: melhor filme, direção (Luiz Fernando Carvalho), ator (Selton Mello, dividindo com Werner Schünemann, de Netto Perde sua Alma), ator coadjuvante (Leonardo Medeiros), atriz coadjuvante (Juliana Carneiro da Cunha), fotografia (Walter Carvalho) e música (Marco Antônio Guimarães). Também conquistou prêmios nas mostras de São Paulo, Havana (Cuba), Cartagena (Colômbia), Lima (Peru) e Guadalajara (México).
Na época da estreia nos cinemas, eu entrevistei, por e-mail, o diretor do filme. Confira trechos da conversa:
Em entrevista a Folha de S. Paulo, o senhor disse que, depois da crise criativa na direção da novela O Rei do Gado (1996), mergulhou na leitura de livros de ficção, à procura de algo que renovasse sua vontade de criar. O que lhe capturou no livro Lavoura Arcaica?
Aquele livro é uma porta. Ou você entra ou não entra. É uma porta ao mesmo tempo escancarada e trancafiada. Ao leitor, é dada essa escolha. Pode-se desistir na segunda ou terceira página. Antes, porém, caberia ali constar um aviso do poeta Jorge de Lima: "Se vós não tendes sal-gemas, não entreis nesse poema". Comigo deu-se assim, houve uma enorme convergência entre a alma do texto e o meu momento de vida. Vai ver as minhas cicatrizes estavam abertas. Compreendi porque aquela história só poderia ser contada daquela maneira. O drama em si não é novo, como todos sabem, trata-se da eterna luta entre a lei paterna e a ânsia de um filho rebelde, seu desejo de alçar voos, arrebentar cercas. Mas Raduan é um poeta, um criador que mexe nas entrelinhas da coisa e, por tanto, os conteúdos dessa fábula acabam se estilhaçando em mil direções. É um caleidoscópio gerador de linguagem, entendendo-se a linguagem como fruto de uma necessidade, de um estado de sobrevivência. Jamais ilustrativo, seu texto arranha o osso da palavra. E a minha fome era trabalhar com a linguagem, com essa alquimia invisível, com qualquer coisa que me desmentisse, que bagunçasse minhas certezas. Fui então correndo para as entrelinhas daquela coisa. (Quinze anos depois, em entrevista à revista Cult, Luiz Fernando Carvalho disse: "Entre as inúmeras reflexões que o Lavoura propõe, podemos entender o texto como uma grande metáfora política, expondo a luta entre opressores versus oprimidos; a tradição versus a liberdade individual. Leio muitas vezes como um oratório sobre o extermínio das liberdades, sejam elas individuais ou coletivas; este mesmo extermínio que nos levam às guerras dos dias de hoje, gerando milhares de excluídos pelo mundo todo. No texto ecoa a voz dos que são postos à margem, dos que gemem, daqueles famintos que não são aceitos na mesa dos satisfeitos demais. Sem falar da relação entre a ordem e a desordem do mundo, que no livro alcança patamares míticos, mas que também encontra lugar em uma espécie de espelhamento da realidade do nosso próprio país e as suas instâncias de poder, se revelando então como um texto que clama pela utopia de um mundo melhor, mais belo e justo para todos".)
Quanto tempo levou para que Lavoura Arcaica, o livro, virasse roteiro cinematográfico? E como se deu essa transformação?
Olha, nunca houve um roteiro. Entrar no texto de Raduan Nassar me exigiu perseguir a aventura de um imenso conjunto de sensações. Me exigiu muito mais, me exigiu viver o próprio texto. Portanto, não se trata de uma adaptação. Pouco acredito em adaptações. Adaptação é o mesmo que redução, mais ainda quando se trata de uma prosa poética. O filme entra no livro como um leitor, oferecendo os olhos bem abertos. E, como qualquer leitor, reconhecerá então seus sentidos respondendo à leitura. O filme é uma resposta ao livro, uma reação, mas que jamais nega a sua fonte. Ao contrário, avizinha-se dela, porém o mais invisível possível. Minha compreensão do texto de Raduan talvez possa ser resumida em dois níveis: a reprodução de um universo panteísta, onde gente, animais e matérias pertencem a uma só ordem; e na maneira como as palavras carregam o leitor numa descoberta de tempos, espaços e situações que não se dá a priori, mas simultaneamente à "escrita". A transformação em si é a mais pura adoção e fé nesse processo de narrativa, o que também poderíamos dizer que é o nascimento de uma linguagem. Peguei mesmo carona nessa ideia circular, sensória, cheia de mundos paralelos, acreditando que a vida é assim mesmo, estamos aqui e a qualquer instante nossos sentimentos nos transportam, abrem-se novos espaços, antigos tempos, tudo é relativo, e a vida sai girando como uma mandala. Em termos cinematográficos, é a linguagem não exercendo uma ação ditatorial na condução da narrativa, como se vê atualmente nos piores exemplos do cinema americano. A linguagem, a meu ver, tem que ser algo invisível, pertencer ao mistério, ao jogo sensório. A minha compreensão do livro passa pela compreensão da arte como uma obra espiritual, que depende das tuas vísceras, da tua alma, das tuas antenas. Isso faz com que você penetre em zonas mais sutis. Não fui só eu, mas todo elenco e equipe mexeram com a alma daquelas palavras. Todos nós vivenciamos o que seja a criação de uma linguagem.
Como foi a escolha e a preparação de elenco?
Eu queria trabalhar com atores desconhecidos. Interessei-me por grupos de teatro do interior do país, gente mais próxima da vivência com a terra, atores sem verniz. Acabei optando pelo Selton (ator que já havia trabalhado com Carvalho na minissérie Os Maias) por se tratar de um texto extremamente sofisticado, que precisaria ser elevado a um nível emocional fortíssimo. Não bastava uma atuação que não comprometesse. Tinha que ser um ator-criador. Existem duas palavras que eu encontro dificuldade em usar: "funciona" e "solução". Atores não são aparelhos domésticos que devem funcionar para serem então vendidos, mas sim "aparelhos" a serviço da sensibilidade, capazes de desaparecer no ato de ceder lugar aos personagens. Com um arquivo que "funciona", você só chega a "soluções" e "resultados" consagrados pelo mercado, em vez de fazer perguntas à imaginação. O desempenho do Selton falará melhor que minhas palavras.
É verdade que o senhor insistiu em ter a atriz portuguesa Juliana Carneiro da Cunha no filme porque ela lhe recorda sua mãe?
Eu sentia essa presença, esse pedido ecoando dentro de mim. Evidentemente, levando primeiro em conta a extraordinária atriz que Juliana é.
Tem-se a impressão de que, durante as filmagens, não havia tempo estabelecido para a duração das cenas, o que assegura a beleza de sequências como a do arado e a da mãe com a farinha nas mãos. Como foi seu trabalho com o câmera?
Sempre acreditei que o livro e o filme seriam um diário. A câmera, portanto, seria uma caneta ou um olho. Estaria voltada mais para dentro do que para fora. Não haveria cartões postais, só paisagens interiores. Para mostrar um quarto de pensão, por exemplo, eu não deveria descrevê-lo, mas revelá-lo através do estado emocional de André, o dono do diário-olho. Isso deveria travar um diálogo muito forte com a imaginação do espectador, que acabaria assumindo aquele olhar. Na montagem, o que mais me preocupava era saber quando e como a câmera se viraria para esse olho-André. Acabei por acreditar que eliminando ao máximo os planos de André talvez pudesse alcançar esse sentido de subjetividade, como se o próprio filme oferecesse o lugar do personagem ao espectador, como na leitura de um livro. O leitor sendo capaz de vestir a máscara do personagem, imaginando-se ali. Tentei que o filme se colocasse à espera dos sentidos do personagem principal e do espectador, e, no melhor dos momentos, misturando-os, como quem joga uma pergunta no ar: como você estaria se estivesse ali, passando por aquela travessia? Tentei levar a câmera e a montagem por esse caminho.
De acordo com o contrato firmado com a rede francesa Canal Plus (depois rompido), Lavoura Arcaica deveria ter uma duração máxima de 1h50min. Na primeira versão, o filme tinha 3h40min. Depois, com a ajuda de Raduan Nassar, foi reduzido para 2h50min. O que ficou de fora? O seu roteiro já previa essa longa duração? E por quê?
Jogue toda essa balela pela janela abaixo. O cinema, como qualquer obra de arte, quer mesmo é discutir a vida. O que me interessa, do primeiro ao último passo, não é outra coisa, mas sim tocar na vida! O resto eu quero que se dane. Ou é isso, ou não sei como te responder exatamente. Mas se você deseja mais palavrinhas, aí vai: o que seria então uma obra fácil? Seria justo associar o termo fácil somente às obras de rápida absorção do mercado? E a palavra arte, não nos é dita hoje com uma dose de menosprezo à inteligência dos espectadores? No meu modo de sentir, toda classificação é excludente, é uma palavra de ordem. Quem sabe, deveríamos privilegiar as diferenças entre as pessoas, capazes de arrumar ou desarrumar isso tudo, classificando coisas e filmes de acordo com a sensibilidade de cada um. Afinal, quem é que nos empurra goela abaixo, e com que sabores falsos nos faz engolir a "pipoca" que consumimos? Quem organiza os critérios do fácil, suas leis, suas regras? Ou, a quem interessaria a reprodução do gosto médio, aquele sem perspectivas culturais, que para seu único deleite esbanja rótulos e consagrações imediatas? Você ainda poderia me perguntar sobre quais mecanismos a produção artística de hoje se apoia para tornar-se visível. E eu seguiria repleto de dúvidas: no mundo de hoje, faz ainda algum sentido insistir na criação para além das cercas do estritamente comercial? Ainda estou engatinhando nessa vereda, por isso não disponho de outra coisa senão dúvidas. Meu filme foi lançado até agora em apenas três Estados, com seis cópias, e já ultrapassamos a barreira dos 100 mil espectadores. Uma vitória sobre aqueles falsos profetas do mercado. Você ainda largaria uma última questão: seria possível associar modelo econômico a modelo estético? Que globalização é essa, que exclui as diferenças, arrastando consigo outras possibilidades de olhar o mundo? Que lei moderninha é essa que nos obriga à unanimidade? Talvez, enfim, eu possa concordar que o Lavoura pertença a uma família cinematográfica. Uma família do Terceiro Mundo, uma família que abraça a todos aqueles que de alguma forma ainda resistem.
O senhor começou sua carreira no cinema, com o curta A Espera (1986), inspirado em Roland Barthes e vencedor de três Kikitos em Gramado, mas acabou indo trabalhar em TV. Quinze anos depois, lança seu primeiro longa. O que mudou na sua visão sobre o cinema?
Hoje faço questão de inserir este e qualquer outro filme que venha a fazer na categoria dos filmes que pertencem esteticamente ao Terceiro Mundo. Escapando assim ao destino comum de tantos filmes ingleses, argentinos, japoneses ou brasileiros, de se parecerem cada vez mais com filmes americanos. É um filme de Terceiro Mundo no sentido de não utilizar artifícios alheios a sua cultura, mecanismos de roteiro importados, embalagens etc. Terceiro Mundo porque preferimos reivindicar a nossa própria imagem, não abrindo mão de nossas contradições. Não há como negar uma massificação da estética, uma descaracterização e um analfabetismo absurdo da linguagem e da narrativa globalizada. Nesse sentido, Lavoura é um filme de resistência, um filme antigo, datado lá onde moram as utopias necessárias.