Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch, saiu faz pouco do catálogo, mas não faltam grandes filmes entre aqueles que só podem ser vistos na MUBI.
A plataforma de streaming que nasceu em 2007 como uma rede social — batizada de The Auteurs — é uma perdição para cinéfilos. Recentemente, por exemplo, entraram em cartaz clássicos de Charles Chaplin como O Garoto (1921), Luzes da Cidade (1931), Tempos Modernos (1936) e O Grande Ditador (1940). Há também uma coleção dedicada à cineasta belga Agnès Varda (1928-2019), desde Cléo das 5 às 7 (1962) ao documentário-testamento Varda por Agnès (2019), passando pelo essencial Os Catadores e Eu (2000). E o trabalho de resgate e memória convive com o olhar para o novíssimo e para o circuito de festivais.
Disposta em ordem alfabética, a lista abaixo reúne 35 filmaços exclusivos da MUBI, que também abriga ótimos títulos disponíveis em outras plataformas — além das obras de Chaplin, vale destacar Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco, Fogo Contra Fogo (1995), de Michael Mann, Gosto de Cereja (1997), de Abbas Kiarostami, e Fale com Ela (2002), de Pedro Almodóvar.
Se você ainda não conhece, saiba que pode fazer um teste grátis por sete dias (clique aqui), e a assinatura mensal custa R$ 34,90. No começo de 2023, a MUBI também entrou para a lista de canais do Amazon Prime Video — assinantes deste serviço pagam R$ 29,90 adicionais.
1) Aftersun (2022)
De Charlotte Wells. A diretora e roteirista escocesa conta a história de um pai divorciado e sua filha de 11 anos durante uma viagem de férias pela Turquia, na década de 1990, quando a Macarena ainda era coqueluche mundial. Ele é Calum, interpretado por Paul Mescal. Ela é Sophie, vivida pela novata Frankie Corio. Ambos estão encantadores, e a química entre os dois opera a mágica de acharmos que são pai e filha de verdade. Há uma terceira personagem importante: a Sophie 20 anos mais velha (Celia Rowlson-Hall). Ela surge no reflexo de uma TV, assistindo às cenas do passeio gravadas por uma filmadora caseira. Sophie é vista ainda no que parece ser uma festa, onde a luz estroboscópica funciona como representação do quanto a perturba revisitar suas recordações. Seu olhar melancólico completa o alerta: durante aqueles dias ensolarados na Turquia, em meio aos banhos de piscina e aos mergulhos no mar, às tardes no fliperama e às noites no karaokê, às piadas internas ("Torremolinos!") e às bebidas coloridas, algo aconteceu, algo se perdeu, algo se quebrou. Mas o quê?, pode se perguntar o espectador diante da doçura com a qual Calum trata a filha e da adoração que ela tem por ele. Aqui está o ponto de Aftersun: agora adulta, Sophie pode — por mais doloroso que seja — vasculhar suas memórias à procura das fissuras que não enxergamos na infância.
2) Alcarràs (2022)
De Carla Simón. O drama espanhol que recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim é inspirado na família da diretora, que cultiva pêssegos em Alcarràs, na Catalunha. O filme começa com três crianças, Iris e os gêmeos Pere e Pau, brincando na carcaça de um carro, que fingem ser uma nave espacial. Parecem idílicas férias de verão, mas a vida dos pequenos e dos adultos (avós, pais, tios) está para sofrer um choque: terão de abandonar o lugar ou mudar de negócio — em vez de plantar frutas, instalar painéis de energia solar. Vividos por um elenco local, sem experiência, os personagens reagem cada um a sua maneira. Um se enfurece, outro tenta fingir que nada está acontecendo, um terceiro tenta se unir aos algozes para garantir emprego... Ao não eleger um protagonista, Alcarràs enfatiza a importância e o poder da comunidade em um filme sobre como a modernidade (ou a suposta modernidade) transforma radicalmente a vida no campo. E ao não estabelecer uma narrativa com um desenvolvimento dramático mais convencional, preferindo flagrar os Solés ora em cenas de crise, ora em cenas de alegria, Simón espelha a alternância de momentos bons e ruins das vidas de todos nós.
3) Amor à Flor da Pele (2000)
De Wong Kar-Wai. Evocando o clássico O Ano Passado em Marienbad (1961), do francês Alain Resnais, o cineasta chinês dirige um dos mais belos filmes tristes e talvez o mais sexy sem ter cena de sexo. A história se passa em 1962, em Hong Kong, onde dois casais acabam de se mudar para o mesmo prédio. Com o tempo, o jornalista vivido por Tony Leung Chiu-Wai (melhor ator no Festival de Cannes) e a secretária que mora no apartamento vizinho (Maggie Cheung) descobrem que seus respectivos cônjuges estão tendo um caso. A dor mútua acaba aproximando os dois personagens, que hesitam em concretizar a crescente atração física. Originalmente chamado de In the Mood for Love, Amor à Flor da Pele é extremamente refinado do ponto de vista estético, com seus figurinos elegantes e a exuberância colorida da direção de fotografia. As canções românticas na voz aveludada de Nat King Cole contrastam com sequências melancólicas, como aquelas que, em câmera lenta, acompanham erráticas caminhadas noturnas.
4) Annette (2021)
De Leos Carax. Durante os créditos iniciais, o cineasta francês que adquiriu aura de cult graças a obras como Sangue Ruim (1986), Os Amantes da Pont-Neuf (1991) e Holy Motors (2012) pede, uma narração em off, para o público ficar quieto, prender a respiração e refletir sobre o que está vendo. Ou seja, este é um musical declaradamente artificial, totalmente cantado e rimado — mesmo quando os personagens estão em uma cena de sexo. Também é uma história de amor, ainda que marcada pelo signo da tragédia e pela crítica satírica à futilidade da indústria do espetáculo: a do comediante Henry McHenry (interpretado por Adam Driver) e a da cantora lírica Ann (Marion Cotillard). O suprassumo do artificialismo é o nascimento da filha do casal, Annette, que não é uma criança, mas uma boneca, não muito diferente daquela da franquia de terror Annabelle. Daí por diante, o filme que operava mais em chave cômica passa a lidar com o tormento, o grotesco e a morbidez, mas sempre contrabalançando com elementos paródicos. Até que ao final ganha contornos definitivamente dramáticos. É bom? Eu gostei? Não sei dizer. Certo que é ousado, por vezes genial, em outras maçante ou mesmo enervante. É uma obra-prima arrebatadora ou um desastre pretensioso, depende do ponto de vista do espectador.
5) O Batedor de Carteiras (Pickpocket, 1959)
De Robert Bresson. O diretor de As Damas do Bois de Boulogne (1946) já era consagrado quando se integrou à nouvelle vague com este filme minimalista e enxuto sobre o cotidiano de um batedor de carteiras. Sem fazer julgamento moral, Bresson mostra seu protagonista como um tipo que se deixa levar pela compulsão e faz do crime uma forma de externar sua revolta contra a sociedade. Pickpocket logo foi aclamado pelos realizadores do cinema novo francês — entre as homenagens prestadas, está o nome do protagonista de Acossado (1960), batizado por Godard de Michel, tal qual o batedor de carteiras bressoniano vivido por Martin LaSalle.
6) Carol (2015)
De Todd Haynes. Celebrizado pela temática LGBT+ — dirigiu Velvet Goldmine (1995) e Longe do Paraíso (2002), por exemplo —, o cineasta estadunidense assina este drama baseado em romance da escritora Patricia Highsmith. A delicada trama é sobre uma mulher rica casada (Cate Blanchett, indicada ao Oscar de melhor atriz) e uma balconista (Rooney Mara, concorrente à estatueta de coadjuvante) que se apaixonam na conservadora década de 1950.
7) A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010)
De Werner Herzog. Documentário fascinante sobre a descoberta (e o significado) das pinturas rupestres mais antigas de que se tem notícia. A caverna do título se chama Chauvet Pont-d'Arc e fica no sudoeste da França. Foi encontrada em dezembro de 1994 por espeleólogos como Jean-Marie Chauvet, que se aventuravam pelas belas paisagens da região. O lugar guarda um tesouro de mais de 30 mil anos, que inclui esqueletos fossilizados de animais como mamutes e bisões, pegadas intactas e cerca de 400 pinturas que "documentam" o convívio do homem com tais criaturas. No filme, a arte pré-histórica leva Herzog a fazer questionamentos de fundo existencial.
8) Close (2022)
De Lukas Dhont. Ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e foi o concorrente da Bélgica no Oscar de melhor filme internacional. Com um estilo de filmagem muito naturalista, que remete ao dos irmãos belgas Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Close tem como personagem principal Léo (em ótima atuação do estreante Eden Dambrino), 13 anos, filho caçula de agricultores que cultivam flores e melhor amigo de Rémi (Gustav De Waele), que tem a mesma idade e estuda oboé para um dia, quem sabe, tornar-se músico. Os dois não se desgrudam, passam o dia inteiro brincando, e de noite chegam a dormir abraçados. Mas não são namorados. Ou não importa se são ou não são, como disse o diretor em uma entrevista. Este é um filme sobre como matamos a amizade entre meninos desde que eles são jovens. À medida que envelhecem e passam a lidar mais com as expectativas de masculinidade, os garotos se veem forçados a deixar de lado a ternura e a fragilidade e a abraçar a agressividade e a violência.
9) Crimes of the Future (2022)
De David Cronenberg. Em seu primeiro longa-metragem desde Mapa para as Estrelas (2014), o cineasta canadense faz um filme aparentado de Crash: Estranhos Prazeres (1996). O roteiro de Crimes of the Future foi escrito na mesma época, e novamente Cronenberg mistura sexo e máquinas, faz do corpo um cenário para o terror, aborda a conexão entre prazer e dor e pergunta: qual é o limite? Qual é o nosso limite?
Para além do talento em engendrar cenas de revirar estômagos — tanto dos personagens vividos por Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart quanto dos espectadores —, o diretor também estimula reflexões sobre os humanos como ainda os conhecemos, a sociedade contemporânea e o mundo de amanhã. A substituição do "velho sexo" pelo prazer de perfurar ou ser perfurado cirurgicamente faz lembrar de como na vida estamos sempre procurando suprir algo que nos falta — no caso, a dor —, sempre buscando um equilíbrio emocional. O superpoder do menino Brecken assusta porque, no fundo, é capaz de ser encarado como uma "ideia brilhante", a um só tempo econômica e ecológica: imaginem se o sistema digestivo pudesse "evoluir" a ponto de nos alimentarmos de plástico, produtos químicos e até lixo tóxico. Já as lacerações faciais, vistas como tendência de moda, refletem como somos reféns do desejo de aceitação social e sobre como podem se tornar patológicos o culto à beleza e as intervenções corporais, ambos diariamente turbinados por celebridades e influenciadores no Instagram.
10) Dançando no Escuro (2000)
De Lars von Trier. É o musical mais triste que eu já vi. Vencedor da Palma de Ouro e do prêmio de melhor atriz - concedido à cantora islandesa Björk - no Festival de Cannes, concorreu ao Oscar de canção original (I've Seen It All). O elenco inclui a francesa Catherine Deneuve, estrela de dois musicais revolucionários — Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e Duas Garotas Românticas (1967) —, e o estadunidense Joel Grey, oscarizado coadjuvante de Cabaret (1971). A personagem principal de Dançando no Escuro, Selma, é uma mulher que viajou da República Checa aos Estados Unidos, nos anos 1960, na esperança de uma vida hollywoodiana, mas encara um duro dia a dia. Mãe solteira que está ficando cega, Selma trabalha em uma usina têxtil e luta para juntar dinheiro com o objetivo de custear a cirurgia do filho de 12 anos, condenado à mesma doença ocular degenerativa. Selma também participa dos ensaios para uma produção do musical The Sound of Music (A Noviça Rebelde) e assiste a filmes que alimentam os devaneios necessários como forma de suportar a realidade. Que fica cada vez mais dura e triste, incluindo sua demissão, um roubo, uma acusação injusta e um crime.
11) Delicatessen (1991)
De Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet. No seu primeiro longa-metragem, os diretores franceses ensaiaram as experimentações estilísticas e visuais que 10 anos depois culminariam em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001). Trata-se de uma mistura de comédia macabra e suspense policial em um mundo pós- apocalipse, onde um ex-palhaço de circo (Dominique Pinon) aceita emprego de ajudante de açougueiro.
12) Dogville (2003)
De Lars Von Trier. Com Manderlay (2005, também disponível na MUBI), este filme compõe a trilogia inacabada do diretor dinamarquês sobre o estilo de vida e as idiossincrasias da sociedade dos Estados Unidos. Dogville é uma história dividida em um prólogo e nove partes, narrada pelo ator John Hurt em um tom misto de parábola bíblica e versão irônica da peça Nossa Cidade (1938), de Thornton Wilder. Aliás, o filme rodado em um enorme galpão na Suécia não tem cenários: os espaços são delineados com riscos de giz no chão, como marcas teatrais. A trama se passa nos anos 1930, a época da Grande Depressão. Nicole Kidman interpreta Grace, mulher que, fugindo de gângsteres, pede abrigo em uma cidadezinha estadunidense, a fictícia Dogville do título. Encorajada por Tom (Paul Bettany), espécie de porta-voz da cidade, a moça fecha com a população um acordo informal: eles a ajudam a se esconder e ela, em troca, faz pequenos serviços para os moradores. A relação, porém, aos poucos se deteriora — a ponto de os pacatos habitantes deixarem aflorar toda a sua perversidade e transformarem Grace em escrava, inclusive sexual.
13) Dente Canino (2009)
De Yorgos Lanthimos. O cineasta grego é um dos mais badalados da atualidade — seu mais reente longa-metragem, Pobres Criaturas (2023), recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza e está bem cotado ao Oscar. Na premiação da Academia de Hollywood, Lanthimos já concorreu três vezes: como diretor e produtor de A Favorita (2018) e como um dos roteiristas de O Lagosta (2016). Dente Canino disputou a estatueta dourada de melhor filme internacional. Inspirado no estilo de Michael Haneke, o grego assina um drama psicológico com elementos do absurdo. Na trama, marido e esposa (Christos Stergioglou e Michelle Valley) mantêm seus três jovens filhos (Angeliki Papoulia, Christos Passalis e Mary Tsoni) ignorantes sobre o mundo fora de suas propriedades — uma cerca alta delimita até onde eles podem brincar. Isso mesmo: apesar de adultos, o trio se envolve diariamente em jogos infantis. Mas um deles, o rapaz, pode fazer sexo. Aí, a curiosidade leva uma das irmãs a desafiar o estado das coisas.
14) Drive my Car (2021)
De Ryûsuke Hamaguchi. O Oscar de melhor filme internacional coroou uma trajetória que inclui o prêmio de roteiro no Festival de Cannes, o Globo de Ouro, o Bafta e o Critics' Choice. Seu diretor não tem pressa para contar suas histórias. Já fez um filme de quatro horas e 15 minutos e outro de cinco horas e 17 minutos. Drive my Car tem três horas de duração, mas é tão imersivo que poderíamos passar mais tempo junto aos personagens, ouvindo seus longos diálogos sobre paixões, segredos e arrependimentos. Aliás, é tão intimista que realmente nos sentimos muito próximos dos personagens.
O protagonista é Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator e diretor de teatro que tem sua vida abalada por perdas e traumas. Não por acaso, um dos cenários principais do filme é Hiroshima, cidade arrasada pela bomba atômica em 1945. Yûsuke viaja a Hiroshima para montar a peça Tio Vânia, de Tchékhov. Por causa das regras do festival de teatro, lá não poderá dirigir seu amado e bem cuidado carro, um Saab vermelho com 15 anos de uso e no qual escuta fitas cassete com falas dos espetáculos. Aí, ele passa a interagir com Misaki (Tôko Miura), a motorista contratada pelo festival. Ela também é atormentada pela dor e pela culpa. Nas ruas e nas estradas de Hiroshima, um lugar marcado pela morte e pela destruição, mas também pela resiliência e pela reconstrução, Yûsuke e Misaki vão, pouco a pouco, revelando os buracos de suas almas e encurtando a distância. No caminho, surgem curvas dramáticas, sinuosas, mas nunca bruscas, e sempre em direção a algum tipo de cura.
15) Eraserhead (1977)
De David Lynch. É o primeiro longa-metragem do cultuado cineasta estadunidense, que depois assinaria títulos como O Homem Elefante (1980), Veludo Azul (1986) e Cidade dos Sonhos (2001). Quando foi exibido em Porto Alegre, o jornalista Roger Lerina descreveu assim Eraserhead: "Esquisito pra chuchu, o drama filmado em preto e branco acompanha o pesadelo no qual mergulha o personagem Henry Spencer (Jack Nance) depois que sua esposa dá à luz um bebê monstruoso — a lenda diz que Lynch utilizou o feto embalsamado de um animal para criar o tal neném do mal".
16) A Estrada Perdida (1997)
De David Lynch. Leva aos limites do compreensível a história de um músico de jazz acusado do assassinato de sua esposa sob misteriosas circunstâncias. Bill Pullman e Patricia Arquette são os protagonistas deste filme cheio de sombras a disfarces.
17) Festa de Família (1998)
De Thomas Vinterberg. Vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, foi o primeiro filme produzido dentro do Dogma 95, manifesto dinamarquês que pregava um cinema mais realista. Suas 10 regras estipulavam, por exemplo, que a câmera deve ser usada na mão, sem qualquer tipo de iluminação que não esteja presente na própria locação, as tramas tinham de ser contemporâneas e era proibido recorrer a cenas de ação artificiais, como assassinatos. A trama de Festa de Família se passa durante o aniversário de 60 anos do patriarca. O filho mais velho (papel de Ulrich Thomsen) acusa publicamente o pai de abusar sexualmente tanto dele como de sua irmã gêmea, que recentemente se matou. No elenco, Tomas Bo Larsen, Trine Dyrholm e Paprika Steen.
18) First Cow: A Primeira Vaca da América (2019)
De Kelly Reichardt. O diretor do oscarizado Parasita (2019) sentiu inveja deste faroeste às avessas realizado pela cineasta estadunidense. No Oregon de 1820, um cozinheiro (John Magaro) e um imigrante chinês (Orion Lee) tentam sobreviver e, se possível, prosperar à sombra de um inglês rico (Toby Jones). A partir daí, First Cow aborda assuntos urgentes nos dias de hoje: a agressividade inata e o caráter predatório do capitalismo, o fosso entre os ricos e os pobres, a necessidade de cooperação e solidariedade, a importância de um convívio mais harmônico com a natureza.
19) História Real (1999)
De David Lynch. Para um cineasta cuja obra se dedica a investigar o lado sombrio da existência em histórias intrincadas e sinuosas, surpreender o público pode significar filmar um enredo solar, humanista e linear. É exatamente o que fez o diretor em História Real. O título original, The Straight Story, tanto pode ser traduzido como A História de Straight, sobrenome do protagonista, quanto A História Direta, referência à narrativa objetiva e retilínea. Baseado em fatos, o longa-metragem acompanha o périplo que o aposentado Alvin Straight (Richard Farnsworth, indicado ao Oscar de melhor ator) decide empreender para visitar seu irmão Lyle (Harry Dean Stanton), vitimado por um derrame. A separá-los, além cerca de 700 quilômetros, está um rompimento acontecido 10 anos antes. A distância física e emocional do irmão é muito grande, e Alvin decide percorrê-la com o vagar e o tempo que a situação exigem: dirigindo um lento cortador de grama. No meio da jornada de seis semanas de estrada, ele vai acertando as contas com o passado, compartilhando-o com outros viajantes. Uma curiosidade mórbida: diagnosticado com câncer terminal, Farnsworth se suicidou n dia 6 de outubro de 2000, aos 80 anos.
20) O Insulto (2017)
De Ziad Doueiri. Indicado ao Oscar de filme internacional, representando o Líbano, "evita a tentação da simplificação maniqueísta ao abordar um tema complexo", escreveu o jornalista Carlos André Moreira em ZH. O longa-metragem trata das tensões políticas no país do Oriente Médio, simbolizadas numa discussão aparentemente banal. Tony Hanna (Adel Karam) é um cristão de extrema-direita, admirador fervoroso do líder nacionalista Bashir Gemayel. Mecânico de automóveis, vive com a esposa grávida (Rita Hayek) em uma área populosa e degradada de Beirute, que está passando por reformas de infraestrutura realizadas majoritariamente por operários palestinos — muitos deles refugiados ilegais, o que torna seus salários convidativos para a empresa que os contrata. Um dia, regando suas plantas, a água vaza pela calha com defeito e molha o mestre de obras Yasser Salameh (Kamel El Basha). Yasser vai até o apartamento, se oferece para consertar o cano e é repelido. Tenta fazer o conserto pelo lado de fora da sacada e Tony rebenta o cano novo com uma marreta. É aí que o capataz responde com o "insulto" que dá título à trama.
21) Lamb (2021)
De Valdimar Jóhannsson. O primeiro longa-metragem do diretor islandês recebeu um prêmio pela originalidade na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes e conquistou três troféus em Sitges, prestigiada competição espanhola de terror e fantasia: melhor filme, diretor estreante e atriz (a sueca Noomi Rapace). Com toques de terror folclórico e drama existencialista, a história se passa em uma fazenda de ovelhas, onde um casal sem filhos — Maria (Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) - se vê às voltas com um misterioso bebê. Sim, é um filhote de ovelha, como o cartaz entrega. Mas convém não revelar mais da sinopse. O que dá para dizer é que Lamb trata de como lidamos com o luto e das consequências que podemos sofrer quando desafiamos a vontade da natureza. E vale avisar que os 105 minutos de duração transcorrem vagarosamente, criando uma atmosfera asfixiante que combina com a gélida paisagem, até chegar a um clímax poderoso.
22) Melancolia (2011)
De Lars von Trier. Nem Jack Bauer, literalmente (não foi à toa que o cineasta dinamarquês escolheu o protagonista da série 24 Horas, Kiefer Sutherland, para este filme), evita o apocalipse. Depois de mostrar o fim do mundo ao som da música ultrarromântica de Wagner, o filme muda bruscamente de ritmo: uma instável câmera no ombro registra o luxuoso casamento de Justine (Kirsten Dunst, prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes) e Michael (Alexander Skarsgård) na bucólica e rica mansão no campo onde vivem a irmã da noiva, Claire (Charlotte Gainsbourg), com o marido John (papel de Sutherland). A cerimônia aos poucos vai revelando as tensões e os fantasmas que cercam a família da noiva — e expondo principalmente o comportamento ciclotímico de Justine. Enquanto isso, o planeta batizado de Melancolia vem em direção à Terra.
23) O Ódio (1995)
De Mathieu Kassovitz. Os violentos conflitos sociais que viriam a eclodir na França uma década adiante é o tema do longa que deu ao autor o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Em um subúrbio de Paris, vivem o judeu Vinz (Vincent Cassel), o negro Hubert (Hubert Koundé) e o árabe Saïd (Saïd Taghmaoui), jovens proletários que sentem em seu cotidiano os efeitos da intolerância e do preconceito. Quando um rapaz árabe que participava de uma manifestação é baleado pela polícia, o trio decide que chegou a hora de dar o troco à sociedade que os ignora.
24) Oslo, 31 de Agosto (2011)
De Joachim Trier. Nesse título baseado no romance francês Le Feu Follet (1931), de Pierre Drieu La Rochelle, o diretor norueguês acompanha a jornada de Anders ( interpretado por Anders Danielsen Lie, coadjuvante em A Pior Pessoa do Mundo, também de Trier), 30 e poucos anos, paciente de uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. O personagem recebe uma breve licença para comparecer a uma entrevista de emprego — o que faz parte do tratamento — em Oslo, onde ele decide revisitar pessoas, lugares e lembranças, todos gatilhos para sua depressão e para sua inadequação social. Atenção: o filme sai de cartaz no dia 29 de setembro.
25) O Pântano (2001)
De Lucrecia Martel. Premiado nos festivais de Berlim e de Havana, transcorre em duas casas de família ao longo de um verão em Salta, província da região noroeste da Argentina, próxima à fronteira com a Bolívia, e terra natal da diretora. Em uma delas, vive o clã da matriarca Mecha (Graciela Borges), que bebe constantemente e passa quase o tempo todo fora do ar ou reclamando da vida com a prima, Tali (Mercedes Morán), que mora na outra casa. Os filhos de ambas alternam-se entre brincadeiras com armas de fogo e facões, insinuações sexuais — inclusive incestuosas — e provocações mútuas. "A banalidade dos eventos, como a turva água de um lodaçal", escreveu Roger Lerina em ZH, "esconde a profunda turbulência de criaturas que submergem aos poucos, tragadas pela entropia de uma existência sem sentido. A inércia contagiante passa dos adultos aos jovens e crianças, embotando os ânimos de todos".
26) Pleasure (2021)
De Ninja Thyberg. É o filme que desnuda a indústria pornô. Embora não faltem cenas com pênis eretos e expostos, a ênfase está em indústria. No seu primeiro longa-metragem, a diretora sueca adota o olhar de uma atriz novata — interpretada com assombro pela estreante Sofia Kappel - para retratar o negócio do sexo explícito na Califórnia. Ganhamos acesso a bastidores que vão desde os termos de um contrato e uma espécie de glossário da profissão até as técnicas (ou mesmo improvisos) demandadas em uma produção. Pleasure acompanha a jornada de Bella Cherry, o pseudônimo artístico de Linnéa, garota de 19 anos que trocou a Suécia por Los Angeles em busca do estrelato. Mas até onde ela está disposta a ir? No fundo, este é um filme sobre as relações de poder no universo do trabalho. Sobre como podemos ser manipulados e sobre como nossas ambições podem nos dessensibilizar. No fim do dia, quem nunca se perguntou: vale a pena?
27) A Professora de Piano (2001)
De Michael Haneke. Mestre do mal-estar, o diretor austríaco adapta um romance autobiográfico de Elfriede Jelinek tido como uma atordoante visão da sexualidade feminina e um ataque aos valores da tradição musical do seu país. O filme conquistou três troféus no Festival de Cannes: o Grande Prêmio do Júri, melhor atriz (Isabelle Huppert) e melhor ator (Benoît Magimel). A francesa Huppert encarna Erika Kohut, professora de piano quarentona que vive sob o domínio da mãe parasitária (Annie Girardot). Elas dormem na mesma cama, mas chegam a se estapear quando brigam. Erika não toca nos grandes concertos, mas em salões burgueses, e dá aulas no Conservatório de Viena. Rígida com os jovens estudantes, é capaz de crueldades — como, por ciúme, depositar cacos de vidro no bolso do casaco de uma aluna. À noite, antes do jantar, Erika se flagela com uma lâmina de barbear: enquanto o sangue escorre pela perna, seu rosto permanece impassível. A psicopatia da pianista inclui cinemas pornô e sex shops. Sua defesa ao afeto é desarmada quando um aluno (Magimel) se apaixona, dando início a um festival de humilhações e fantasias sadomasoquistas.
28) Rainha de Copas (2019)
De May el-Toukhy. Da Dinamarca, um dos países onde há o menor índice de desigualdade social e a maior qualidade de vida, surgem filmes que mostram personagens afligidos por dilemas morais, aturdidos por segredos de família, hostilizados pela sociedade e, não raro, atolados em encrencas nas quais eles mesmo se colocam. É o caso da protagonista do longa da diretora May el-Toukhy, Anne (interpretada por Trine Dyrholm), uma bem-sucedida advogada especializada em defender adolescentes vítimas de abuso sexual ou violência doméstica que acaba se envolvendo com o jovem enteado, Gustav (papel de Gustav Lindh). Vencedor do Prêmio do Público no Festival de Sundance ( EUA), Rainha de Copas segue ou adapta algumas das 10 regras estipuladas no manifesto do Dogma 95. Os personagens parecem pessoas reais flagradas em afazeres bem rotineiros ou em momentos delicadíssimos, diante dos quais somos costumeiramente instigados a imaginar como reagiríamos. E não há pudor em relação ao sexo: se ele tem de acontecer para o desenvolvimento da trama, será mostrado sem artifícios.
29) Retorno a Howard's End (1992)
De James Ivory. O mais inglês dos cineastas americanos começou a fazer sucesso com Uma Janela para o Amor (1985), uma de suas tantas versões para obras literárias. Outra característica dos filmes de Ivory é a ambientação no passado, muitas vezes na Inglaterra e não raro no reinado de Eduardo VII (1901 a 1910). É o caso de Uma Janela para o Amor, de Maurice, de A Taça de Ouro e deste Retorno a Howard's End. Na trama, mulher culta e emancipada (Emma Thompson) herda, sem saber, uma casa de campo por vontade da matriarca de uma família aristocrata de quem é amiga (Vanessa Redgrave). Os filhos da milionária são contrários à doação, mas o viúvo (Anthony Hopkins) acaba propondo casamento à herdeira, o que provoca uma crise familiar. Foi indicado a nove Oscar, incluindo melhor filme e direção, e conquistou três: atriz (Emma Thompson), roteiro adaptado e direção de arte.
30) O Sacrifício (1986)
De Andrei Tarkovski. Laureado com o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, foi o último filme realizado pelo aclamado cineasta russo. Gira em torno de um intelectual de meia-idade, o ex-ator e agora crítico Alexander (Erland Josephson), que tenta negociar com Deus para impedir um holocausto nuclear iminente.
31) Segredos e Mentiras (1996)
De Mike Leigh. Sucesso de público e crítica, venceu o Festival de Cannes e concorreu em cinco categorias do Oscar: melhor filme, direção, atriz (Brenda Blethyn, também premiada na mostra francesa), atriz coadjuvante (Marianne Jean-Baptiste) e roteiro original. Na trama ambientada na classe trabalhadora da Inglaterra, uma jovem negra procura por sua mãe, que ela descobre ser uma mulher branca que tivera um caso passional com um turista negro.
32) A Separação (2011)
De Asghar Farhadi. Neste filme consagrado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim, o Globo de Ouro e o Oscar internacional, o cineasta iraniano apresenta uma imagem do seu país que não é muito comum na celebrada cinematografia de lá. O cenário é urbano e cosmopolita, a mulher tem voz ativa no arranjo doméstico, e o enredo reproduz uma tensão dramática familiar que é universal. Marido bancário (Peyman Moadi) e a esposa professora (Leila Hatami) encaram uma crise conjugal diante da determinação dela em aproveitar um visto para sair do país. Mas ele não aceita deixar para trás o pai senil e tampouco autoriza que ela viaje com a filha adolescente deles. Os desdobramentos do impasse são lançados ao espectador de forma engenhosa, com conflito legal espelhado nos preceitos morais e religiosos que regram aquela sociedade.
33) Shiva Baby (2020)
De Emma Seligman. Ao comparecer a um funeral judeu com seus pais, uma estudante universitária bissexual (Rachel Sennott) depara com seu "sugar daddy", o homem mais velho que a financia em troca de sexo. Concordo com o que diz o menu da plataforma: Shiva Baby "encontra o ponto ideal entre sofrimento e hilaridade".
34) Titane (2021)
De Julia Ducournau. Quase 30 anos após a conquista da neozelandesa Jane Campion com O Piano (1993), a diretora e roteirista francesa tornou-se a segunda mulher na história a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Como em Raw (2016), ela tem uma jovem como protagonista e trabalha questões como identidade e sexualidade — na obra anterior, uma vegetariana que estuda Veterinária vira canibal. Para tanto, não se furta de lançar mão de imagens perturbadoras e da violência gráfica. O corpo, seja o da atriz Agathe Rousselle, que interpreta a dançarina Alexia, seja o do ator Vincent Lindon, que encarna um bombeiro à procura do filho desaparecido, é um personagem à parte em Titane. "Eu sou muito, muito interessada em corpos. Gosto muito de filmá-los e gosto de usar os corpos dos meus personagens para falar sobre a sua psique", disse Ducournau em entrevistas. "O que adoro na gramática do terror corporal é que, se você desligar o som da TV e assistir ao filme, não só ainda entende o enredo, como também entende o que está acontecendo dentro do personagem e como ele se sente, porque é retratado em sua pele e em seu corpo."
35) Você Não Estava Aqui (2019)
De Ken Loach. Não há nada de sobrenatural, nada de efeitos especiais, mas este é um filme de terror. Retrata um monstro sem rosto, mas com vários logotipos reconhecíveis, que assola empregados e desempregados: a precarização do trabalho. O assustador realismo da trama encenada em Newcastle, no norte da Inglaterra, é realçado pela escalação de atores estreantes ou desconhecidos; pela postura econômica da câmera, quase documental (a sensação é de que estamos nos intrometendo); e pelo uso parcimonioso da trilha sonora. O protagonista de Você Não Estava Aqui é Ricky Turner (Kris Hitchen), um pai de família que, após ter atuado na construção civil e na jardinagem, setores em que chefes durões e colegas preguiçosos o incomodavam, resolve ser patrão de si mesmo. Vira motorista de uma empresa que faz entregas do comércio digital, sem carteira assinada. "Aqui você não trabalha para nós. Aqui, trabalha conosco", diz a ele o gerente Maloney (o ex-policial Ross Brewster), em um canto da sereia que prenuncia uma jornada de problemas.