Recém adicionado ao catálogo brasileiro da plataforma de streaming MUBI, Titane (2021) fez história no Festival de Cannes. Quase 30 anos após a conquista da neozelandesa Jane Campion com O Piano (1993), a diretora e roteirista francesa Julia Ducournau tornou-se a segunda mulher a ganhar a Palma de Ouro.
Fez também barulho. Há relatos de que as cenas de sexo e de morte provocaram mal-estar no público, a ponto de alguns espectadores vomitarem ou abandonarem a sessão. Daí que Titane mereceu manchetes do tipo "O filme mais chocante", "O filme mais grotesco", "O filme mais perturbador".
Ducournau, 38 anos, está acostumada com essas reações. No seu primeiro longa-metragem, o ótimo Raw (2016, atualmente indisponível no streaming), uma vegetariana que estuda Veterinária vira canibal. Temas como identidade, sexualidade, o rito de passagem para a vida adulta e a opressão do coletivo sobre o indivíduo — simbolizada pelo trote universitário — são refletidos em imagens despudoradas de erotismo e violência. O filme foi premiado pela Federação Internacional de Críticos de Cinema, a Fipresci, em Cannes e levou três troféus em Sitges, prestigiado festival espanhol de horror e fantasia.
Agora, trabalhando novamente com o diretor de fotografia Ruben Impens, com o editor Jean-Christophe Bouzy e com o compositor Jim Williams — um trio essencial para a construção da atmosfera de sensualidade e perigo —, a cineasta conta a história de Alexia (interpretada pela estreante Agathe Rousselle), uma jovem que, na infância, após um acidente de carro, precisou colocar uma placa de titânio no crânio. O médico alerta seus pais para observarem eventuais contratempos neurológicos.
Pois bem: dançarina que se exibe em salões de automóveis, onde a recebem como uma estrela, Alexia é também uma assassina serial que transa com um carro — no caso, um Cadillac. Ela inclusive engravida — o óleo preto que escorrerá de sua vagina e de seu seio não deixa dúvida sobre a paternidade do bebê por vir. Deve ter sido transgressor demais para a Academia de Hollywood, que deixou Titane de fora da lista dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional.
Na outra ponta da trama, está o bombeiro Vincent, encarnado por Vincent Lindon, melhor ator em Cannes por O Valor de um Homem (2015), e à procura do filho desaparecido. Lindon, 62 anos, malhou bastante para o papel, pois tanto o corpo de Alexia quanto o de Vincent são personagens à parte.
— Eu sou muito, muito interessada em corpos. Gosto muito de filmá-los e gosto de usar os corpos dos meus personagens para falar sobre a sua psique — disse Ducournau em entrevistas à época do lançamento de Raw. — O que adoro na gramática do terror corporal é que, se você desligar o som da TV e assistir ao filme, não só ainda entende o enredo, como também entende o que está acontecendo dentro do personagem e como ele se sente, porque é retratado em sua pele e em seu corpo.
Essa filiação ao chamado body horror e o fetiche automobilístico de Titane suscitam uma aproximação com o cineasta canadense David Cronenberg (de Enraivecida na Fúria do Sexo, A Mosca, Gêmeos: Mórbida Semelhança) e seu Crash: Estranhos Prazeres (1996), sobre um grupo de pessoas que se excita com a reconstituição de acidentes de carro. Um parentesco mais forte é com Frankenstein (1818), o mítico romance escrito por Mary Shelley: Alexia é como um monstro sem controle em busca da própria identidade.
Mas Ducournau também olha para questões muito atuais: Titane trata gênero, sexualidade e amor como flexíveis e em permanente mudança.
— Sou alguém que vê a vida em constante metamorfose. Eu realmente acredito que você tem que ser muitos para ser um. E talvez nunca seremos um — disse a diretora em entrevista a Annabell Nugent, do jornal inglês The Independent, acrescentando que, no seu cinema, o importante é "passar por essas peles".
Os filmes de Julia Ducournau espelham esse discurso. Têm várias camadas, as tramas estão sempre sujeitas a inesperadas ou mesmo improváveis mudanças de rumo — uma grande virtude em um gênero repleto de produções previsíveis —, descarnam seus personagens (às vezes literalmente) para chegar a seu âmago. E, por consequência, tentar descobrir o que significa ser humano: alguém que abriga e que desperta sentimentos conflitantes, como amor e ódio, alguém que convive com a eterna disputa entre a razão e a emoção (pode-se dizer que o personagem de Vincent Lindon faz uma escolha conscientemente impulsiva).
Para alcançar esse objetivo, no caso de Titane era fundamental escalar uma atriz desconhecida.
— Eu queria alguém que não trouxesse junto a história de outros filmes — Ducournau disse na mesma conversa com o Independent. — Alguém que fosse completamente virgem do cinema para que pudéssemos estar realmente imersos em sua transformação à medida que ela ocorre.
E, com seu rosto andrógino, a modelo e jornalista Agathe Rousselle, 33 anos, permite que Alexia se transforme sob uma luz diferente, sob um ângulo diferente — "a fluidez do visual dela é algo que me atraiu muito", afirmou a diretora.
A imersão proposta por Ducournau é potencializada pelo trabalho da equipe de maquiagem e efeitos especiais, baseado em referências médicas (a propósito, ela é filha de um dermatologista e de uma ginecologista). As agressões, os arranhões, as perfurações, os vazamentos... Enfim, tudo o que acontece com os corpos é bastante realista, em que pese o tom fantástico das histórias — como a tal dualidade do ser humano, né? A diretora justifica:
— Estou tentando apagar a distância entre você e meus personagens. Estou tentando apagar a distância causada pela tela, que é causada pelo fato de meu filme ser ficção. Caso contrário, você não é obrigado a sentir o que eles sentem. Quanto mais extravagante a cena, mais orgânica tem de ser, para não haver essa distância que existe no gênero sci-fi em geral. Tem que ser perto de nós.