Correção: Raw já foi removido do catálogo da Netflix. Eu havia assistido ao filme anteriormente e acabei não conferindo se continuava em cartaz. Peço desculpas aos leitores que ficaram interessados em ver.
No momento, indisponível no streaming, Raw (Grave, 2016) foi o primeiro longa-metragem de Julia Ducournau, a segunda mulher na história a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Quase 30 anos depois da conquista da neozelandesa Jane Campion, com O Piano (1993), a diretora e roteirista francesa venceu com Titane — que, quando chegar às plataformas, será lançado pela MUBI, em data a ser definida.
Nos dois títulos, Ducournau, 37 anos, tem uma jovem como protagonista e trabalha questões como identidade e sexualidade. Para tanto, não se furta de lançar mão de imagens perturbadoras e da violência gráfica. Em Raw, uma vegetariana que estuda Veterinária torna-se canibal; em Titane, a personagem é descrita como uma dançarina que faz amor com um Cadillac e vira assassina serial.
"Eu sou muito, muito interessada em corpos. Gosto muito de filmá-los e gosto de usar os corpos dos meus personagens para falar sobre a sua psique", disse Ducournau em entrevistas à época do lançamento de Raw (que, no Brasil, ficou com seu título em inglês, que significa cru). "O que adoro na gramática do terror corporal é que, se você desligar o som da TV e assistir ao filme, não só ainda entende o enredo, como também entende o que está acontecendo dentro do personagem e como ele se sente, porque é retratado em sua pele e em seu corpo."
Também exibido em Cannes (concorria ao prêmio Camera d'Or, destinado a cineastas estreantes) e ganhador de três troféus no prestigiado Festival de Sitges, na Espanha (voltado para produções de terror e fantasia), Raw se filia ao subgênero do body horror, o horror corporal. É uma tradição que inclui desde os filmes de zumbi até títulos como A Centopeia Humana (2009) e Saint Maud (2019), passando pela obra do canadense David Cronenberg (Enraivecida na Fúria do Sexo, A Mosca, Gêmeos: Mórbida Semelhança, Crash: Estranhos Prazeres).
Raw também remete a dois filmes também assinados por diretoras francesas. Em Desejo e Obsessão (2001, disponível na Reserva Imovision), Claire Denis conta a história de um cientista que trabalha para curar sua esposa doente: ela tem um incontrolável apetite sexual, associado ao canibalismo, e foge de casa para fazer vítimas aleatórias em lugares ermos, poupando assim o marido. Em Em Minha Pele (2002), Marina de Van dirige e protagoniza a trama sobre uma mulher que, após sofrer um acidente, fica obcecada em se ferir e comer a própria pele.
No longa-metragem de Ducournau, a atriz Garance Marillier retoma a personagem Justine, que encarnara no primeiro curta da diretora, Junior (2011). Trata-se de um rito de passagem da adolescência para a juventude — não à toa, lê-se em uma pichação que "Junior is dead" (Junior está morto). E é um rito violento: ao ingressar na faculdade, Justine enfrentará o bullying dos veteranos. A lista dos trotes aplicados inclui ser levada à força, com a roupa de dormir, para uma festa; ficar trancada com um rapaz, ela pintada de azul, ele, de amarelo, em um quarto de onde só poderão sair quando ambos estiverem verdes; e ter de comer o fígado de um coelho.
Esse é um momento-chave no filme. Vegetariana convicta — ela diz não entender como estudantes de Veterinária podem consumir carne ("Não foi por gostar de animais que escolhemos este curso?", indaga) —, Justine chega a pedir ajuda para sua irmã mais velha, mas, na condição de veterana, Alexia (papel de Ella Rumpf) acaba endossando a brutalidade para com a caloura.
A partir daí, a protagonista passa a viver momentos de turbulência enquanto tenta acomodar seus dilemas morais e seus anseios — sexuais, dá para dizer, embora o canibalismo em Raw também possa ser visto como uma resposta à agressividade do ambiente universitário. Enquanto o roteiro de Ducournau prepara surpresas (ora pungentes, ora chocantes), Garance Marillier e Ella Rumpf exercem um sinistro fascínio sobre o espectador. A trilha sonora contribui para a construção de espaços que podem ser opressivos, sangrentos até, mas também carregados de alta voltagem erótica. O rap Plus Putes que Toutes les Putes, das gêmeas do Ortie, versa sobre necrofilia, por exemplo, e a canção de pegada festiva Despair, Hangover and Ecstasy, do duo feminino The Dø, parece traduzir a frustração e a inércia das gerações mais jovens. Já a música tema composta por Jim Williams ora soa como um réquiem barroco, ora sugere algo celestial, um hino para as eventuais conquistas de Justine à medida que atinge sua maturidade e encontra uma identidade.