Na primeiríssima cena de A Noite do Fogo (Noche de Fuego, 2021), filme mexicano cotado ao Oscar que estreou na Netflix nesta terça-feira (1º), inicialmente com o título Reze pelas Mulheres Roubadas, uma mulher e uma menina de seus oito, nove anos estão cavando com as mãos um buraco na terra. É uma cova? Um esconderijo?
— Entra, Ana — diz a personagem mais velha, que se revelará sua mãe logo adiante.
Na sequência, após o letreiro informar secamente o nome da obra escrita e dirigida por Tatiana Huezo, Ana e mais duas gurias aparecem embrenhadas em uma floresta. Vemos e ouvimos as personagens recitando cores: amarelo, preto, amarelo, vermelho. Só na última imagem descobrimos o objeto de sua observação: uma cobra coral venenosa.
À noite, Ana, deitada à espera do sono, encolhe-se na cama ao flagrar, na parede, um escorpião. Pouco depois, Paula surge com os cabelos bem curtinhos, como os de um menino.
Exibidas nos minutos iniciais dos 110 de duração do filme, essas quatro cenas simbolizam o que é viver em uma comunidade violentada pelo narcotráfico. O perigo e a morte estão sempre nas redondezas, o silêncio e a fuga são aliados vitais, o medo dita os passos — sobretudo os das mães e os das filhas.
Merecedor de uma menção honrosa na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes e um dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional (a lista dos cinco concorrentes sai em 8 de fevereiro), A Noite do Fogo é baseado em romance publicado em 2014 pela autora Jennifer Clement e lançado no Brasil como Reze pelas Mulheres Roubadas. Trata-se da primeira ficção de Huezo, 50 anos, após os premiados documentários El Lugar más Pequeño (2011) e Tempestade (2016). Há semelhanças entre os três filmes. No primeiro, rodado em El Salvador, onde a diretora nasceu, os habitantes de uma cidadezinha revivem suas experiências durante a guerra civil no país (1979-1992) enquanto lembram de seus entes queridos. O segundo acompanha as jornadas de duas mexicanas vítimas da corrupção policial e do tráfico humano.
A Noite do Fogo, que valeu a Huezo uma indicação ao prêmio de estreante do Sindicato dos Diretores dos EUA, tem uma abordagem próxima do documental. O elenco conta com crianças e adolescentes recrutados nas zonas rurais do México, a maioria sem experiência em atuação. A câmera se detém, sem pressa, sobre afazeres cotidianos, como subir a montanha para tentar obter sinal de celular, e pequenas diversões — um banho gelado de riacho, uma paquera platônica pelo professor — das personagens.
A principal é Ana, vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Marya Membreño na adolescência — ambas estreantes —, filha de Rita (a atriz Mayra Batalla). Suas melhores amigas são Maria (Blanca Itzel Pérez/Giselle Barrera Sánchez), que tem lábio leporino, e Paula (Camila Gaal/Alejandra Camacho).
É pelos olhos das garotas que vemos a história. Por isso, nem tudo é dito ou mostrado: Ana espia por frestas, ouve conversas ao fundo. Aos poucos, vamos apreendendo a dura rotina das famílias que, diante da falta de oportunidades e de autoridades, trabalham no cultivo da papoula, de onde se extrai o ópio que vai dar origem a drogas como heroína e metadona. "Não somos os maus, somos pobres", disse um agricultor em uma reportagem assinada por Jan Martínez Ahrens e publicada pelo El País em 2016. Acuadas pelos cartéis, elas também são penalizadas pelo exército, que trava uma guerra a distância: helicópteros militares, quando localizam uma plantação, destroem tudo o que encontram no caminho, incendiando florestas e envenenando fontes d'água e os moradores do local.
O povoado escolhido por Tatiana Huezo como cenário chama-se Neblinas por estar situado no alto da Sierra Gorda, no Estado de Querétaro. Mas o nome também alude à atmosfera fantasmagórica de um lugar que convive com a perda e o desaparecimento.
Dilacerante sem ser apelativo, A Noite do Fogo reflete sobre as consequências da violência sistêmica e da omissão do Estado. Como é crescer onde você provavelmente terá que lidar com a morte precoce? Não é vida: é sobrevivência. A inocência da infância e os desejos da adolescência contrastam com o estado de alerta coletivo despertado pelo barulho de caminhonetes na estrada de chão batido ou pelo latido dos cachorros nos pátios das casas. O ponto de vista escolhido pela diretora também suscita momentos de poesia, carinho, sororidade e esperança. Mas um dia a noite há de cair sobre aquela comunidade, uma hora o fogo há de arder sem queimar a dor.
A corrida pelo Oscar
Os cinco indicados a melhor filme internacional, a serem anunciados pela Academia de Hollywood em 8 de fevereiro, sairão desta lista de 15 semifinalistas:
O Bom Patrão (Espanha), de Fernando León de Aranoa (*)
Colmeia (Kosovo), de Blerta Basholli (*)
Compartimento Nº 6 (Finlândia), de Juno Kuosmanen (*)
Drive My Car (Japão), de Ryusuke Hamaguchi (*)
A Felicidade das Pequenas Coisas (Butão), de Pawo Choyning Dorji (em cartaz no Cine Grand Café, no Espaço Bourbon Country e na Sala Eduardo Hirtz)
A Fuga (Dinamarca), de Jonas Poher Rasmussen (*)
Grosse Freiheit (Great Freedom, Áustria), de Sebastian Meise (*)
Um Herói (Irã), de Asghar Farhadi (estreia em 3/3)
O Homem Ideal (Alemanha), de Maria Schrader (exibido nos cinemas)
Lamb (Islândia), de Valdimar Jóhannsson (estreia em 25/2 no MUBI)
A Mão de Deus (Itália), de Paolo Sorrentino (Netflix)
A Noite do Fogo (México), de Tatiana Huezo (Netflix)
A Pior Pessoa do Mundo (Noruega), de Joachim Trier (estreia em 10/2)
Playground (Bélgica), de Laura Wandel (*)
Plaza Catedral (Panamá), de Abner Benaim (*)
(*) Sem data confirmada