A primeira exibição foi no Festival de Cannes, em maio de 2011, quando o dinamarquês Nicolas Winding Refn ganhou — sem trocadilho — o prêmio de melhor direção. Mas os 10 anos da estreia de Drive nos cinemas serão completados nesta quinta-feira (16). Como se eu precisasse de uma data para reverenciar ou rever esse filmaço estrelado por Ryan Gosling e disponível no Amazon Prime Video e no Globoplay.
Drive é um sofisticado exercício estilístico sobre um arquétipo recorrente em Hollywood: o do homem calado e calejado, às vezes travestido de justiceiro, noutras de criminoso, não raramente mocinho e bandido na mesma persona.
O protagonista não tem nome. Ganha a vida pilotando carrões para bandos de assaltantes em fuga ou como dublê em cenas de perseguição em produções cinematográficas. É um sujeito deslocado e sem território que apenas quando está dirigindo parece adequado ao espaço que habita.
Apega-se a uma garota sem entender ao certo o que sente. Mas é por ela que se envolve numa ciranda típica dos filmes de roubo, em que um erro sucede o outro e a violência explode. Só que, quando isso acontece, já estamos embarcados na carona do protagonista, embalados pela trilha sonora e admirando a paisagem produzida pela combinação de visual retrô, fusões de imagens e cenas em câmera lenta. É uma experiência sensorial — que, para minha surpresa, continuou me arrepiando, mesmo ao assistir na tela de um smartphone (sim, um sacrilégio, mas naquele dia as minhas filhas estavam vendo Luccas Neto na sala).
A partir de um texto que eu e os jornalistas Daniel Feix e Marcelo Perrone fizemos em 2012, elenco aqui 10 motivos que ajudaram a transformar Drive em um filme de culto, a torná-lo um filme de assalto que rouba nosso coração, a fazer um filme violento ser amado.
1) Reinvente a história de um livro badalado
Drive, o livro, é muito diferente de Drive, o filme. O best-seller assinado pelo jornalista e autor de romances policiais James Sallis descreve com mais detalhes a personalidade do protagonista, narrando episódios de sua infância, aí incluídos acontecimentos que deram origem a traumas diversos e o fizeram fugir de casa, sozinho, antes de atingir a maioridade. Além disso, os personagens secundários e seu envolvimento com o Piloto (é como a tradução brasileira chama The Driver) aparecem de maneira mais discreta, na comparação com o filme — como se o que importasse, mesmo, fosse o próprio protagonista. Os capítulos são invariavelmente curtos, e a narrativa é fragmentada, cheia de idas e vindas no tempo, o que acentua o suspense e torna a fruição mais complexa.
2) Explore mitos do cinema hollywoodiano
Em vez do pistoleiro solitário cavalgando por pradarias em busca de uma causa justa para sacar a sua arma, Hollywood também consagrou como imagem icônica e fetichista o ás do volante que faz de seu carrão envenenado a extensão de seu corpo e de sua personalidade. O desfile de bólidos pilotados por Ryan Gosling em Drive é de fazer salivar os amantes da velocidade. O próprio ator reformou um Chevrolet Malibu 1973 que aparece em cena. Ele também pega no volante de, entre outros, um Chevrolet Impala, na primeira sequência do filme, e de um Ford Mustang GT 5.0 2001, este numa perseguição de arrepiar.
O enigmático piloto vivido por Gosling remete ao detetive vivido por Steve McQueen e seu Ford Mustang 390 GT no longa Bullitt (1968), que traz a antológica sequência da perseguição pelas ladeiras da cidade de San Francisco, e a Corrida contra o Destino (1971), com o desiludido Kowalski (Barry Newman) acelerando seu Dodge Challenger R/T 440 Magnum pelas estradas ds Estados Unidos em uma jornada existencialista e suicida. Em À Prova de Morte (2007), Quentin Tarantino prestou tributo explícito a este outro filme de culto. Também pode-se identificar no protagonista de Drive traços de Taxi Driver (1976) e da franquia apocalíptica Mad Max.
3) Escolha o ator certo na hora certa
Quem acompanhava a carreira de Ryan Gosling desde Tolerância Zero (2001), na pele de um jovem judeu que se torna neonazista, já sabia: era questão de tempo até o ator canadense se tornar "o" cara. Então com 31 anos, bonitão sem ser um Brad Pitt, Gosling havia se especializado, em filmes como A Garota Ideal, Namorados para Sempre e Tudo pelo Poder, em viver tipos introspectivos, solitários, com um código de ética muito próprio — quando o quebram, o sofrimento desses personagens é quase religioso. Não havia outro alguém para protagonizar Drive.
4) Capriche na escalação dos coadjuvantes
Vinda de uma indicação ao Oscar de melhor atriz por Educação (2009), a inglesa Carey Mulligan, então com 26 anos, era o que os estadunidenses chamam de girl next door, a guria bonita que poderia ser sua vizinha de porta (no caso de Drive, literalmente). Seu jeito doce e melancólico casa bem com a personagem Irene. Naquele mesmo ano de 2011, Carey fez uma interpretação antológica da canção New York, New York em outro baita filme, Shame, de Steve McQueen. Dez anos depois, ela concorreria de novo ao Oscar, por Bela Vingança.
A escolha para o bandido Bernie Rose foi um lance tarantinesco. A exemplo do que o cineasta estadunidense fez, por exemplo, com John Travolta em Pulp Fiction, o dinamarquês Nicolas Winding Refn resgatou Albert Brooks, então com 64 anos, que não fazia cinema desde 2003 (estava sendo esporadicamente visto, ou ouvido, apenas na TV, como no seriado Weeds e no desenho animado Os Simpsons), e o colocou em um registro nada habitual — o ator é mais associado a papéis cômicos.
Bryan Cranston e Christina Hendricks foram chamarizes para o público de dois seriados incensados e premiados. Ele, o rosto e a alma de Breaking Bad, faz o mecânico Shannon.
Ela, a secretária Joan de Mad Men, interpreta Blanche, uma femme fatale ruiva e suburbana que entra na rota do protagonista.
5) Misture forma e conteúdo
A introspecção do personagem principal esconde a tensão da história — a frieza nas relações que estabelece parece uma proteção contra seus impulsos (a propósito, drive, em inglês, também tem esse sentido). A contenção no trabalho dramático de Gosling combina com a profusão de elipses na narrativa: nem sempre sabemos exatamente o que está acontecendo. Além disso, a direção de fotografia ilustra a personalidade do protagonista, volta e meia colocando-o no canto das cenas abertas.
6) Fetichize roupas e objetos
Cores vibrantes, néons, letreiros e jogos de luzes que remetem aos anos 1980 — Drive é retrô em sua essência. O trabalho de composição imagética de Refn incorpora signos facilmente reconhecíveis pelos espectadores, além de apostar na força sedutora dos objetos cênicos. Além dos carrões, há o martelo, a máscara e até o palito de dente usado por Gosling. Há, sobretudo, a sua jaqueta dourada com um escorpião bordado às costas — quase uma atriz coadjuvante, uma espécie de uniforme, como o super-herói que o dublê pode delirar ser, e um símbolo explícito da natureza trágica do protagonista. O "recorte e monte seu Driver" que circulou na internet à época evidenciou o forte apelo visual do filme.
7) Use músicas que evoquem o filme fora da tela
Ora atmosférica, ora tensa, a música de Drive foi composta por Cliff Martinez, estadunidense que foi baterista do Red Hot Chili Peppers, estreou no cinema com Sexo, Mentiras e Videotape (1989) e firmou carreira a partir de inúmeras parcerias com o diretor Steven Soderbergh. São dele 14 das 19 músicas do disco. Outras quatro são assinadas por grupos de electrorock — destaque para Nightcall, a música de abertura, que une Kavinsky aos vocais da brasileira Lovefoxxx, do Cansei de Ser Sexy), e A Real Hero, parceria do College com Electric Youth, que toca durante o bucólico passeio do protagonista com a personagem de Carey Mulligan e seu filho, cujos versos "a real human being / and a real hero" (um ser humano de verdade e um herói de verdade) parecem um comentário irônico. Por fim, é impossível esquecer do resgate de Oh My Love, pungente canção dos italianos Riz Ortolani e Katyna Ranieri que embala uma perseguição noturna.
8) Alterne beleza e brutalidade
Não faltam momentos bonitos, assim como não faltam momentos sangrentos. Às vezes, uma coisa pode ser emendada à outra em questão de segundos, como na cena do elevador. A violência é gráfica, como a de Park Chan-wook ou Quentin Tarantino (mas sem a tentativa de humor deste último). Com um pé no acelerador e outro no freio, com um pé na delicadeza e outro na cara de um sujeito, Drive é o que se poderia chamar de um filme de ação contemplativo.
9) Torne o espectador um cúmplice
Sabemos que, apesar dos arroubos de sensibilidade, o protagonista não é exatamente um mocinho, mas a essa altura do campeonato a condução do filme já nos transformou em seu copiloto. E agora, como reagir quando ele empunhar seu martelo? É permitido vibrar? Filmes também atingem a perenidade quando nos provocam desconforto em relação a nossos próprios impulsos e sentimentos.
10) Não enrole
Drive dura pouco mais de uma hora e meia, tempo suficiente para algumas viradas na trama, mas sem coelhos tirados da cartola. Quando Ryan Gosling entra no carro pela última vez, já sabemos para onde ele vai.