Deixei passar mais de um mês da estreia de À Espreita do Mal (2019) na Netflix para falar aqui sobre o filme estrelado pela Helen Hunt. Quase estrelado, melhor dizendo, por dois motivos. Primeiro porque, hoje com 57 anos, a atriz ganhadora do Oscar por Melhor É Impossível (1997) e indicada como coadjuvante por As Sessões (2012) — um tesouro escondido e inacessível, a propósito — fez algum procedimento estético que travou suas expressões faciais. Segundo porque sua personagem, que começa como se fosse a protagonista, a certa altura some de cena por um bom tempo.
Mas enfim, o fato é que não me sentia à vontade para comentar À Espreita do Mal porque tudo o que me prendeu ao filme era algo que eu não poderia soltar. Agora que, supostamente, mais gente já assistiu, vou me permitir largar spoilers sobre a obra dirigida por Adam Randall — de iBoy (2017) e Night Teeth (2021) — e escrita por Devon Graye (ator cujo maior destaque foi ser o Dexter Morgan adolescente em nove episódios da série sobre o perito criminal que nas horas vagas é assassino serial).
OU SEJA, SE VOCÊ NÃO QUER QUE EU ESTRAGUE SUA SURPRESA, ESTA É A HORA DE INTERROMPER A LEITURA.
À Espreita do Mal tem uma trama que se equilibra entre o banal e o implausível. Helen Hunt interpreta Jackie, esposa de um policial, Greg (Jon Tenney, das séries The Closer, Scandal e True Detective), envolvido na investigação do desaparecimento de dois meninos de 10 anos, e mãe do adolescente Connor (Judah Lewis, o Cole de A Babá), que culpa a mãe por algo que afetou o relacionamento familiar. O ambiente torna-se mais tenso quando coisas estranhas começam a acontecer dentro de casa (e a isso se somam os ecos de um caso policial do passado e uma trilha sonora absolutamente nervosa, assinada pelo estreante Adam Arcane).
À primeira vista, parece que estamos diante de um suspense sobrenatural, de uma ameaça fantasmagórica. Mas daí o segundo ato nos mostra a única virtude de À Espreita do Mal — sim, o filme é fraco, a história não para em pé, as atuações são opacas, a edição mostra-se desarmoniosa e o desfecho é bastante insatisfatório (para quem se arriscou até aqui, não se preocupem, isso eu não vou revelar). Mas o roteirista Graye e o diretor Randall demonstraram capacidade de nos surpreender.
A esperteza narrativa não chega a reinventar a roda, mas funciona: os misteriosos acontecimentos do primeiro ato são vistos por outro ângulo — o dos responsáveis por muitos deles (mas não todos) — e mediante o recurso do found footage. Quando descobrimos o que realmente está ocorrendo na casa, a gente agradece ao autor do título brasileiro, que omitiu a pista gigantesca do original: I See You, eu vejo você.
O eu, no caso, é o personagem vivido por Owen Teague (de It: A Coisa e de The Stand), Alec, que passou a morar escondido dentro daquela residência! Bizarro, mas existe. O fenômeno se chama phrogging, derivado de frog, sapo (em referência à atividade de ficar pulando de um imóvel para outro), já virou tema de reportagens na imprensa estadunidense e, por necessidade, não por diversão, foi levado ao extremo no oscarizado Parasita (2019). Em À Espreita do Mal, Alec desenvolve prazer em perturbar a família em crise, a exemplo do que fazem os mascarados de Os Estranhos (2008), um dos mais assustadores filmes sobre invasão domiciliar.
Falar sobre esse plot twist seria uma tremenda sacanagem. Mas sabem que já acho complicado simplesmente dizer que um filme é "surpreendente" (no sentido de que traz surpresas, viradas na trama)? Porque isso induz o espectador a olhar por trás das cortinas, cria uma expectativa que pode ser repressora das emoções, tira a naturalidade do jogo proposto pelo diretor. Esse, aliás, é um problema dos filmes que não oferecem muito mais do que sua engenhosidade narrativa: salvo exceções, perdem a graça. A não ser que nosso objetivo seja justamente refazer os passos em busca de pistas espalhadas na moita — ou à procura de furos no roteiro.
O segredo pode ser a chave do sucesso de um filme. Quanto menos soubermos, melhor. Há revelações feitas no meio do caminho que caem como uma bomba, que têm efeito desnorteante — não convém avisar, preparar o público. Há finais que mudam totalmente a história que acabamos de ver ou abrem novas portas de leitura. Em outras ocasiões, a solução estava na cara o tempo todo, mas o cineasta, tal qual um ilusionista, como define Christopher Nolan, foi hábil em desviar nosso olhar para outra coisa.
À Espreita do Mal está longe de ser imperdível. Mas, por conta de sua forma, serviu como entretenimento e despertou essa reflexão sobre os filmes que são surpreendentes. E há um bocado deles, como mostra a lista abaixo. Alguns dos títulos convidam para uma revisão, na qual podemos testar a consistência da reviravolta, identificar vestígios do crime ou apenas admirar a genialidade de seus realizadores (há craques nesta área, como indicará a repetição de nomes). Se você leu até aqui, saiba que não revelarei de cara o motivo de cada um ser lembrado — na primeira relação, omiti até as sinopses. Depois, estão publicados todos os spoilers.
45 filmes com plot twists (e onde ver)
1) Psicose (1960), de Alfred Hitchcock (Telecine)
2) O Planeta dos Macacos (1968), de Franklin J. Schaffner
3) O Homem de Palha (1973), de Robin Hardy
4) Chinatown (1974), de Roman Polanski (Google Play e YouTube)
5) Star Wars: O Império Contra-Ataca (1980), de Irvin Kershner (Disney+)
6) Vestida para Matar (1980), de Brian De Palma
7) Acampamento Sinistro (1983), de Robert Hiltzik
8) Coração Satânico (1987), de Alan Parker
9) Sem Saída (1987), de Roger Donaldson (canal MGM do Amazon Prime Video)
10) Traídos pelo Desejo (1992), de Neil Jordan
11) Os Suspeitos (1995), de Bryan Singer
12) Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), de David Fincher (Telecine, Google Play e YouTube)
13) As Duas Faces de um Crime (1996), de Gregory Hoblit (Google Play e YouTube)
14) Clube da Luta (1999), de David Fincher (Amazon Prime Video)
15) O Sexto Sentido (1999), de M. Night Shyamalan (Telecine)
16) O Suspeito da Rua Arlington (1999), de Mark Pellington
17) Psicopata Americano (2000), de Mary Harron (Amazon Prime Video, Google Play e YouTube)
18) Amnésia (2000), de Christopher Nolan (Amazon Prime Video, Google Play e YouTube)
19) Corpo Fechado (2000), de M. Night Shyamalan
20) Os Outros (2001), de Alejandro Amenábar
21) Oldboy (2003), de Park Chan-Wook
22) O Homem que Copiava (2003), de Jorge Furtado
23) A Vila (2004), de M. Night Shyamalan
24) Jogos Mortais (2004), de James Wan (Amazon Prime Video, Telecine e YouTube)
25) Menina de Ouro (2004), de Clint Eastwood (Amazon Prime Video e Google Play)
26) O Grande Truque (2006), de Christopher Nolan (Google Play e YouTube)
27) Desejo e Reparação (2007), de Joe Wright (Amazon Prime Video)
28) O Nevoeiro (2007), de Frank Darabont (Amazon Prime Video)
29) O Segredo dos seus Olhos (2009), de Juan José Campanella (Amazon Prime Video, Google Play e YouTube)
30) A Órfã (2009), de Jaume Collet-Serra (Telecine, Google Play e YouTube)
31) Cisne Negro (2010), de Darren Aronofsky (Telecine)
32) Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese (Netflix, Amazon Prime Video, Google Play e YouTube)
33) A Pele que Habito (2011), de Pedro Almodóvar (Apple TV)
34) Garota Exemplar (2014), de David Fincher (Amazon Prime Video e Telecine)
35) Boa Noite, Mamãe (2014), de Veronika Franz e Severin Fiala
36) O Convite (The Invitation, 2015), de Karyn Kusama (Netflix)
37) A Chegada (2016), de Dennis Villeneuve (Netflix, Amazon Prime Video, Google Play e YouTube)
38) A Criada (2016), de Park Chan-Wook (Now)
39) Homem-Aranha: De Volta ao Lar (2017), de John Watts (Netflix, Google Play e YouTube)
30) Rastros de um Sequestro (2017), de Jang Hang-jun (Netflix)
41) Corra! (2017), de Jordan Peele (Apple TV, Now, Google Play e YouTube)
42) A Casa do Medo: Incidente em Ghostland (2018), de Pascal Laugier (Telecine, Apple TV, Google Play e YouTube)
43) The Perfection (2019), de Richard Shepard (Netflix)
44) Parasita (2019), de Bong Joon-Ho (Telecine, Apple TV, Now, Google Play e YouTube)
45) O que Ficou para Trás (2020), de Remi Weekes (Netflix)
Agora, os segredos revelados
Daqui por diante, você está por conta e risco. Pare agora se não quiser conhecer os plot twists e os finais dos filmes listados. É o último aviso sobre SPOILERS!
Psicose: 60 anos atrás, Hitchcock empreendeu uma senhora reversão de expectativa ao matar, no meio do filme — e na clássica cena do chuveiro —, aquela que pensávamos ser a protagonista. Depois, o mestre do suspense assombrou o público ao mostrar que Norman Bates finge ser sua mãe, a quem matou muito tempo atrás.
O Planeta dos Macacos: o astronauta americano não está em outro planeta, mas na Terra do futuro, como revela a antológica última cena, com a Estátua da Liberdade enterrada na areia.
O Homem de Palha: nunca houve uma garota desaparecida — isso era apenas uma farsa para atrair um forasteiro (o detetive que investiga o caso) para servir de sacrifício ao Deus do Sol.
Chinatown: a turbulenta cena em que o detetive vivido por Jack Nicholson esbofeteia Faye Dunaway ficou famosa não apenas pela violência, mas pelo que a personagem diz a cada tapa: "Ela é minha irmã! Ela é minha filha! Ela é minha irmã e minha filha!".
Star Wars: O Império Contra-Ataca: "Eu sou seu pai", diz o vilão Darth Vader ao herói Luke Skywalker, mudando toda a dinâmica da saga estelar.
Vestida para Matar: nesta celebração de Psicose, a suposta protagonista feminina (Angie Dickinson) também é assassinada na primeira meia hora do filme por um homem que se traveste de mulher — seu psiquiatra, encarnado por Michael Caine.
Acampamento Sinistro: ela era ele — a introvertida Angela, aterrorizada pela matança em um camping onde seu irmão Peter foi morto oito anos antes, na verdade é seu suposto irmão morto, criado como menina por sua tia após a morte de Angela.
Coração Satânico: o detetive Harry Angel descobre que está investigando o próprio desaparecimento — é ele mesmo o cantor Johnny Favorite. E quem o contrata é ninguém menos do que o príncipe do inferno, Louis Cypher, o Lúcifer.
Sem Saída: passamos o filme todo achando que o oficial da Marinha é um mocinho, mas no fim era ele o espião russo que estava sendo caçado.
Traídos pelo Desejo: Dil, a namorada de um soldado inglês pela qual um integrante do IRA se apaixona, revela em nu frontal que, biologicamente, nasceu homem.
Os Suspeitos: o aparentemente peixe pequeno Verbal Kint é Keyser Soze, o chefão do crime caçado pela polícia.
Seven: a misteriosa caixa de papelão que é entregue no clímax do filme é o gatilho para o assassino serial completar o plano inspirado nos sete pecados capitais.
As Duas Faces de um Crime: o coroinha não tem transtorno de múltipla personalidade, ele é do mal mesmo.
Clube da Luta: não existe Tyler Durden, ele é só um produto da dupla personalidade do protagonista — ou seja, o ator Edward Norton, de As Duas Faces de um Crime, aplicou duas vezes o mesmo truque no público!
O Sexto Sentido: o psiquiatra encarnado por Bruce Willis está morto, por isso que o menino vivido por Haley Joel Osment consegue vê-lo.
O Suspeito da Rua Arlington: o professor universitário estava correto em sua aparente paranoia — o casal de vizinhos era mesmo formado por terroristas da extrema-direita. E o pior: o protagonista passa para a história como o vilão.
Psicopata Americano: é provável que Patrick Bateman seja tão maluco, que seus assassinatos tenham sido um delírio.
Amnésia: além de um filme ser contado de trás para frente, a história que Leonard Shelby narra como de Sammy Jankis é a sua própria.
Corpo Fechado: o dono da loja de quadrinhos que ajuda David a lidar com seus superpoderes é a mente por trás de vários crimes — todo vilão precisa de um herói.
Os Outros: os verdadeiros fantasmas são Grace (Nicole Kidman) e seus filhos.
Oldboy: Mi-do é filha de Dae-su, portanto, o envolvimento amoroso e sexual é um caso de incesto.
O Homem que Copiava: o que era uma comédia romântica sobre um operador de xerox e sua paixão platônica, a vendedora de uma loja de roupas, ganha contornos de policial noir quando se descobre o plano da moça para se livrar de seu pai abusador.
A Vila: não apenas o monstro das florestas era um mito criado pelos fundadores da vila para desencorajar as pessoas a deixarem o local. A própria vila, supostamente do século 19, era uma invenção: estamos no ano de 2004.
Jogos Mortais: o assassino Jigsaw estava o tempo todo ali, se passando por morto.
Menina de Ouro: o que era uma história sobre o sonho de ascensão de uma boxeadora vira um lancinante drama sobre eutanásia depois que a protagonista tem o pescoço quebrado.
O Grande Truque: a história de rivalidade entre dois mágicos envolve um gêmeo insuspeito e clones sacrificados.
Desejo e Reparação: Robbie e Cecilia morreram na Segunda Guerra Mundial. O romance que vemos é mais uma mentira de Briony, agora uma velha escritora que vive, ora, da ficção.
O Nevoeiro: depois de matar os últimos sobreviventes, incluindo seu filho, o protagonista descobre que os militares conseguiram combater as criaturas da névoa.
O Segredo dos seus Olhos: o marido da mulher estuprada e assassinada 25 anos atrás capturou e aprisionou o culpado em uma cela na sua casa
A Órfã: Esther não é uma menina, mas uma mulher de 33 anos com uma anomalia genética que impede seu crescimento físico.
Cisne Negro: Nina não esfaqueou Lily, mas a si mesma, e morre ao atingir a apresentação perfeita.
Ilha do Medo: o policial Teddy Daniels é Andrew Laeddis, e ele está internado no hospício por causa de um crime brutal. Tudo não passa de uma encenação para tentar ajudá-lo a assumir o que fez e, assim, evitar uma lobotomia.
A Pele que Habito: a mulher em quem o cirurgião plástico testa, durante anos, uma pele sintética é, na verdade, um garoto, a quem ele submeteu a uma vaginoplastia e mantém encarcerado como vingança por ter estuprado e matado sua filha.
Garota Exemplar: sinceramente? É tanta virada, que fica difícil de explicar.
Boa Noite, Mamãe: um dos gêmeos morreu no acidente de carro. O outro, por não aceitar a morte do irmão, o imagina vivo enquanto atormenta a mãe, a quem culpa pela morte.
O Convite (The Invitation): na última cena, depois de acharmos que o pior já passou, as luzes vermelhas vistas de uma colina em Los Angeles indicam que o culto assassino havia se espalhado pela cidade.
A Chegada: os flashbacks da linguista Louise são, na verdade, premonições sobre o futuro.
A Criada: outro filme em que há muitos plot twists — não à toa, é dividido em três atos. Basta dizer que ninguém é o que parece ser.
Homem-Aranha: De Volta ao Lar: o vilão, o Abutre, é o pai da garota com quem Peter Parker vai ao baile de sua escola.
Rastros de um Sequestro: mais um filme bastante intrincado. Acho que vou ver de novo.
Corra!: neste, o twist é bem simples — todo mundo na família Armitage, inclusive a namorada do fotógrafo negro, é racista e assassino.
A Casa do Medo: Incidente em Ghostland: as irmãs Beth e Vera nunca foram salvas pela mãe, permanecem aprisionadas, agredidas e estupradas pelo ogro e pela bruxa que invadiram sua casa. O que vemos na segunda parte do filme é a fantasia onde Beth se refugiou.
The Perfection: em um punhado de vezes, o diretor aperta a tecla rewind para nos mostrar que as coisas não aconteceram do jeito que tínhamos entendido. Até o filme, que parece ser sobre obsessão e loucura, vira uma história sobre mulheres abusadas por homens.
Parasita: quando descobrimos, junto com a família farsante, que há um inquilino secreto na casa dos ricos, o grande vencedor do último Oscar aplica um golpe incisivo e inesquecível.
O que Ficou para Trás: Nyagak não era filha de Sol e Rial, mas uma menina que o sujeito separou da mãe para conseguir escapar da guerra civil no Sudão do Sul.