Há um tesouro recém-chegado à Netflix: O que Ficou para Trás (His House, 2020), filme de terror que marca a estreia do britânico Remi Weekes como diretor e roteirista de longas-metragens.
É um filme de casa mal-assombrada, mas suas paredes têm tijolos feitos de um problema muito real. É um filme de fantasmas, mas esses personagens não são do passado — representam uma tragédia contemporânea. É um filme de sustos, mas o que arrepia é a história contada.
O que Ficou para Trás se passa em um subúrbio inglês onde se instala, como asilados políticos, um casal fugido da guerra civil no Sudão do Sul — conflito que, entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2020, matou pelo menos 400 mil pessoas. São eles Bol (interpretado pelo britânico Sope Dirisu) e Rial (a nigeriana Wunmi Mosaku, a Ruby do seriado Lovecraft Country). Eles vieram desse país africano em específico, mas seu drama é universal e urgente: o dos refugiados, sejam originários da Síria, do Afeganistão, do Iraque, de Mianmar, da Palestina ou de qualquer outra nação manchada de sangue e fraturada por perseguições étnicas, religiosas ou políticas, lugares onde a luta pela sobrevivência não raro suscita medidas extremas.
O terror de Bol e Rial começa com a lista de restrições impostas — não podem trabalhar, não podem fumar, não podem ter animais, não podem convidar amigos ou dar festas — e com as precárias condições do novo endereço. Para quem não tinha nada, no entanto, aquele é o início de uma nova vida. E também um espaço e um tempo para curar o trauma pela perda da menina Nyagak (Malaika Wakoli-Abigaba), morta afogada durante a travessia para a Europa.
Bol é o mais animado, ou no mínimo o mais empenhado, a ponto de, em um bar, juntar-se a torcedores ingleses para cantar uma musiquinha em homenagem ao centroavante Peter Crouch. A ressabiada Rial chega a se perder quando resolve dar um passeio pelas redondezas. Em ambos os casos, o pesadelo da xenofobia e do racismo se faz presente nas ruas inglesas.
Não demora para que os dois passem a ser atormentados por eventos sobrenaturais dentro de casa, o que acaba emparedando os sul-sudaneses contra um medo bastante real: o de não ganharem a cidadania britânica.
Como nos melhores filmes de terror, a fantasmagoria é uma manifestação com causa — que pode ser psicológica, social, política etc. O que não pode é ser revelada aqui, porque O que Ficou para Trás está alicerçado na parcimoniosa descoberta do motivo para as assombrações. Remi Weekes mostra-se muito habilidoso e sensível — e também apavorante — ao conjugar elementos clássicos do gênero à questão migratória. Faz lembrar o que a francesa Mati Diop fez no belo Atlantique (2019), ambientado no Senegal, mas aqui o diretor britânico permite-se mergulhar de cabeça no cinema fantástico, ao mesmo passo mirando o desvendar dos mistérios.
Quando o quebra-cabeças está todo montado, ficam realçadas peças que Weekes jogou desde o início, desde a conversa de Bol e Rial com os burocratas da imigração. E aí O que Ficou para Trás consolida-se como um filme que não fica para trás: o poder de suas imagens e a angústia de seus personagens acompanharão o espectador por algum tempo, como aquele peso que carregamos sem ter como largá-lo para um descanso, posto que habita dentro de nós.