Laranja Mecânica, Operação França, Perseguidor Implacável, Sob o Domínio do Medo e Shaft completam 50 anos em 2021, mas terem sido lançados em 1971 não é a única coisa que guardam em comum. O emprego da violência — incluindo a sexual — caracteriza e une os cinco filmes.
Isso não aconteceu por coincidência, tampouco foi algo exclusivo daquela temporada cinematográfica. Havia um caldo cultural que vinha sendo cozinhado por um longo tempo e que alimentou os cinco respectivos diretores, todos nascidos nos Estados Unidos: Stanley Kubrick, William Friedkin, Don Siegel, Sam Peckinpah e Gordon Parks. Mesmo que Kubrick morasse em Londres e se baseasse em um romance escrito em 1962 pelo inglês Anthony Burgess, mesmo que Peckinpah tenha ambientado seu filme na Inglaterra, essas obras parecem espelhos do agonizante fim do sonho americano.
A primeira estocada — e por isso a mais traumática, vide os 17 minutos da canção Murder Most Foul, que Bob Dylan lançou no ano passado — foi dada em 1963: o assassinato do presidente John F. Kennedy. Orador carismático e inspirador ("Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país"), JFK era um símbolo tanto do progressismo, na política interna (prometia na educação e combater a discriminação racial, por exemplo), quanto do expansionismo/imperialismo, na externa (ordenou a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, e apoiou um golpe no Iraque, por exemplo) — o que se traduz até no seu desejo de que os Estados Unidos liderassem a corrida espacial.
Os baques foram se acumulando. Os assassinatos de Malcolm X (1965), de Martin Luther King (1968) e de Fred Hampton (1968, reconstituído no filme indicado ao Oscar Judas e o Messias Negro), três dos principais líderes do movimento pelos direitos civis dos negros. O assassinato de outro Kennedy, Robert, o Bobby, irmão de John e provável candidato do Partido Democrata à presidência, morto em 1968. O massacre de My Lai, também em 1968, capítulo mais escabroso das tropas norte-americanas na Guerra do Vietnã. A brutal repressão policial a protestos em Chicago, ainda em 1968, contra o conflito e o ultrajante julgamento que se sucedeu (ambos reencenados no filme concorrente ao Oscar Os 7 de Chicago) — em 1970, quatro estudantes da Universidade Estadual de Kent, em Ohio, acabaram mortos a tiros pela Guarda Nacional, durante uma manifestação contrária à invasão do Camboja, vizinho do Vietnã. O terror instaurado entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970 pelo Zodíaco, o assassino serial cuja identidade até hoje nunca foi descoberta. A chocante morte a facadas da atriz Sharon Tate, que estava grávida de nove meses, por integrantes da seita de Charles Manson, em agosto de 1969. Os episódios de violência do festival de rock de Altamont, na Califórnia, em dezembro de 1969 — o que era para ser "o Woodstock do Oeste" terminou definido como o evento que decretou o epílogo do sonho hippie de paz e amor.
Todo esse sangue, todo esse medo, todo esse desencanto, toda a descrença e toda a revolta contra o poder público e a própria sociedade — todo esse contexto foi refletido nos cinco filmes destacados aqui.
Laranja Mecânica
Lançado originalmente em 1971 e indicado a quatro Oscar — melhor filme, direção (Stanley Kubrick), roteiro adaptado (pelo próprio cineasta a partir do romance de Anthony Burgess) e edição —, Laranja Mecânica chegou ao Brasil apenas em 1978. Antes, passou por uma curiosa intervenção da censura a serviço da ditadura militar. A cópia liberada sem cortes para maiores de 18 anos trazia saltitantes bolinhas pretas que tentavam cobrir partes do corpo dos personagens avaliadas como inapropriadas à moral e aos bons costumes da nação.
O cenário de Kubrick é uma sociedade futurista em que um grupo de jovens liderado pelo degenerado Alex (em uma interpretação icônica de Malcolm McDowell) se diverte espancando, estuprando e matando quem cruza seu caminho. O personagem acaba usado como cobaia para um tratamento revolucionário — e igualmente brutal —, a Técnica Ludovico, empregada pelo Estado para tornar o rapaz um "cidadão do bem". (Disponível no Google Play e no YouTube)
Operação França
Vencedor de cinco Oscar — melhor filme, diretor (William Friedkin), ator (Gene Hackman), roteiro adaptado e edição — e segunda maior bilheteria de 1971, Operação França tornou-se uma baliza para os títulos e os personagens do gênero policial. O detetive Popeye Doyle interpretado por Hackman é um dos precursores do processo de amoralização dos homens da lei (depois, em 1973, Friedkin estabeleceria um cânone do terror: O Exorcista) que seria, digamos, aperfeiçoado pelo Dirty Harry de Clint Eastwood (leia logo abaixo).
Na trama baseada em uma história real, Doyle e seu parceiro Buddy Russo (Roy Scheider, indicado ao Oscar de coadjuvante) combatem um esquema de tráfico de drogas que liga Nova York a Marselha. Instável, durão e pragmático, o protagonista fica obcecado em capturar o chefão francês (vivido por Fernando Rey), o que rende cenas de tiroteio nas ruas e de perseguições automobilísticas. (Disponível no Telecine)
Perseguidor Implacável
Inspirado no detetive David Toschi, um dos policiais que investigaram os crimes do serial killer Zodíaco na costa oeste dos EUA, o fictício Harry Callahan — o Dirty Harry do título original — não inventou a persona cinematográfica do tira sisudo que não tem receio de cruzar os limites do certo e do errado para fazer justiça. Mas Perseguidor Implacável, de Don Siegel, acabou se tornando o suprassumo do gênero.
No filme ambientado em San Francisco, na Califórnia, Harry (encarnado por Clint Eastwood) caça o criminoso autodenominado Scorpio (Andrew Robinson), que mandou para o prefeito uma carta ameaçadora: vai matar uma pessoa por dia até receber US$ 100 mil. Para capturá-lo, o policial terá de sacar muito de sua Magnum .44 e de suas frases de efeito, como "Você tem de se fazer uma pergunta: tive sorte? Você teve, desgraçado?", a mais célebre antecessora da antológica "Go ahead. Make my day" ("Vá em frente. Faça meu dia"), dita em Impacto Fulminante (1983), quarto segmento da franquia.
Por meio das ações de Harry, o Sujo, Perseguidor Implacável faz aquela pergunta seminal: os fins justificam os meios? Já na época, o personagem foi tachado de racista associado ao fascismo por críticos do porte de Roger Ebert e Pauline Kael — segundo ela, o filme era "profundamente imoral", uma peça de propaganda para um poder policial à margem da lei. Em 2010, por conta dos 80 anos de Clint Eastwood, o jornalista cultural Joe Queenan rebateu, citando os trabalhos do ator em faroestes incensados (Por um Punhado de Dólares, O Estranho sem Nome, Três Homens em Conflito, A Marca da Forca, O Cavaleiro Solitário, Os Imperdoáveis): "É apenas quando o anjo vingador aparece num cenário urbano que os paladinos dos direitos civis se insurgem. Westerns se passam numa era com a qual os norte-americanos se sentem confortáveis. Se alguém faz justiça com as próprias mãos no final dos anos 1800, é um herói. Se o faz no final do século 20, é um fascista". (Disponível no Google Play e no YouTube)
Sob o Domínio do Medo
Depois de assinar faroestes como Pistoleiros do Entardecer (1962), Juramento de Vingança (1965) e o clássico Meu Ódio Será sua Herança (1969), o diretor Sam Peckinpah levou a violência e a perturbação moral características para uma trama urbana. Sob o Domínio do Medo acompanha a drástica mudança na vida de um matemático norte-americano, o inseguro David (Dustin Hoffman, em grande atuação), que vai viver com sua esposa inglesa, Amy (papel de Susan George), em uma cidadezinha da Cornualha, no Reino Unido. Ao chegar, o casal, com seus costumes mais liberais, já desperta contrariedade na comunidade local. Não demora para que a tensão se converta em agressões de todo tipo: desde o enforcamento de um gato até o estupro de Amy por um ex-namorado, culminando na reação selvagem de David quando sua casa é invadida.
Hábil em causar mal-estar no espectador, o filme de Peckinpah é um caldeirão efervescente de temas (pedofilia, bullying, abuso sexual, preconceito) e momentos polêmicos — a cena em que Amy é estuprada gerou protestos do movimento feminista, pois a personagem não apenas é culpabilizada: parece, à certa altura, sentir prazer. Por outro lado, Sob o Domínio do Medo retrata bem a compulsão do homem para a violência e a derrocada dos valores sociais. (Lançado em DVD no Brasil pela Versátil)
Shaft
Diz a sinopse: ao ser contratado por um chefão da máfia do Harlem para localizar sua filha adolescente sequestrada, o detetive negro John Shaft acaba se metendo no meio de uma guerra entre gangues de traficantes rivais. Dirigido por Gordon Parks, Shaft chegou aos cinemas dois meses depois do filme que abriu alas à chamada Blaxploitation. A partir de Sweet Sweetback's Baadasssss Song, de Melvin Van Peebles, a comunidade afro-americana passou a se apropriar e a reinventar os estereótipos aos quais estava condenada a encarnar em Hollywood.
O movimento nasceu da luta pelos direitos civis com a fome por novos mercados. Os filmes eram dirigidos e estrelados por negros, com tramas ambientadas nos guetos e calcadas em violência e sexo, nessa ordem — seus personagens eram assumidamente "brutais, vulgares, hipersexualizados". Teve estrelas como Richard Roundtree ( policial Shaft, visto em mais dois longas e em um seriado) e Pam Grier (a sexy vingadora de Coffy e Foxy Brown), era marcado por trilhas sonoras acachapantes (por exemplo, a de Isaac Hayes para Shaft e a de Curtis Mayfield para Super Fly), gerou subgêneros (tipo Blácula, a versão black do célebre vampiro) e atraiu grandes estúdios — a Paramount lançou em 1975 o controverso Mandingo, inspiração para o Django Livre (2012) de Quentin Tarantino, que já havia celebrado a Blaxploitation em Jackie Brown (1997), resgatando Pam Grier. (Uma caixa de DVDs com os três filmes foi lançada no Brasil pela Versátil)