Filmes Negros Importam? As indicações para a 93ª cerimônia do Oscar não refletiram o espaço que as tensões raciais assumiram no debate público dos Estados Unidos em 2020, à luz de casos como os de George Floyd, Breonna Taylor, Andre Hill e Daniel Prude — todos cidadãos negros mortos por policiais brancos. Esperava-se que, como se fosse uma extensão artística do movimento Black Lives Matter, na manhã desta segunda-feira (15) a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciasse pelo menos três filmes sobre racismo entre os candidatos à principal estatueta dourada, a ser entregue em 25 de abril. Mas apenas Judas e o Messias Negro (lançado recentemente nos cinemas, mas ainda não no streaming) foi indicado, e a lista da categoria, que tem um mínimo de cinco concorrentes e um máximo de 10, parou em oito. Acabaram ficando de fora A Voz Suprema do Blues (disponível na Netflix) e Uma Noite em Miami (em cartaz no Amazon Prime Video).
As regras do Oscar estabelecem que nenhum filme pode ser concorrente na categoria se tiver menos de 5% do total de votos. O estranho é que A Voz Suprema do Blues e Uma Noite em Miami estão competindo em três importantes premiações prévias: a da Associação dos Produtores, a do Sindicato dos Roteiristas e a de melhor elenco no SAG Awards, concedido pelos atores e pelas atrizes, o maior colegiado na Academia de Hollywood: com 1.324 membros, representam 15,5% do total de 8,5 mil votantes.
Com essas duas sentidas ausências, o Oscar 2021 não repetirá o que vinha acontecendo de dois em dois anos. Em 2017 e em 2019, os indicados a melhor filme incluíam três obras que abordavam a questão racial. No primeiro caso, o vitorioso Moonlight tinha entre os rivais Um Limite Entre Nós e Estrelas Além do Tempo. A festa estabeleceu um recorde: 20 atores, atrizes, diretores, produtores e roteiristas negros concorreram, e pela primeira vez todas as categorias de interpretação contaram com representantes.
Dois anos depois, foram à disputa Infiltrado na Klan, Pantera Negra e o famigerado Green Book — que acabou levando o troféu, apesar de todas as merecidas críticas feitas pela comunidade afro-americana e pela própria família de um dos personagens biografados: dirigido por um branco, Peter Farrelly, o longa-metragem era para ser a história de um pianista de jazz, Don Shirley, que enfrentou o racismo em uma turnê pelo sul dos Estados Unidos, em 1962, mas tornou-se a história de um homem branco (motorista e segurança do artista) que ensina quase tudo ao negro. Não à toa, em junho de 2020, quando a Academia de Hollywood incluiu 819 novos integrantes, 36% eram oriundos de comunidades étnicas "sub-representadas", segundo a própria entidade, como uma forma de, na hora de escolher indicados e vencedores, aumentar a representatividade e diminuir o racismo estrutural.
Verdade seja dita, já há alguns anos o Oscar, gradativamente, vem trabalhando nessa direção. O estopim foi a hashtag OscarsSoWhite, deflagrada em 2016, quando, pela segunda edição seguida da premiação, nenhum ator ou atriz negro ou latino figurou entre os 20 indicados nas quatro categorias de atuação. A representação negra, que era de 8% em 2015, mais do que duplicou: em 2020, foi para 19% com o acréscimo de nomes como os dos diretores Ladj Ly e Mati Diop e dos atores Brian Tyree Henry, Cynthia Erivo, John David Washington, Lakeith Stanfield, Rob Morgan e Zendaya. É um percentual superior ao da população negra nos Estados Unidos (13%).
Mesmo com a reversão de expectativas na principal categoria, o Oscar 2021 colocou em evidência cinco filmes que têm o racismo como tema central (e ainda poderíamos citar Soul, o primeiro longa de animação da Pixar com protagonista negro, e Time, documentário sobre uma mulher negra que luta para tirar da prisão o marido e pai de seus quatro filhos, condenado a 60 anos de prisão). Os cinco revisitam o passado — recente ou mais remoto — para pensar o presente. E todos estão interligados.
Vejam, por exemplo, os casos de A Voz Suprema do Blues, dirigido por George C. Wolfe e com cinco indicações (confira na lista abaixo), e Uma Noite em Miami, de Regina King, que concorre a três prêmios. Ambos são baseados em peças teatrais que discutem estratégias — não raro divergentes — de combate ao racismo. O primeiro se passa quase todo dentro de um estúdio musical na Chicago de 1927, recriando os bastidores da gravação de Black Bottom, um dos sucessos da cantora Ma Rainey (1886-1939), considerada a mãe do blues. Interpretada por Viola Davis (que chega a sua quarta indicação ao Oscar), Ma vive um duplo atrito: com os donos do estúdio, brancos, e com o ambicioso trompetista encarnado por Chadwick Boseman (indicado postumamente na categoria de ator). No fundo, a cantora e o músico brigam contra o mesmo adversário: a opressão racial, a apropriação cultural, a exploração da mão de obra e do talento negros pela sociedade branca.
São assuntos recorrentes em Uma Noite em Miami, no qual grande parte da ação ocorre dentro do quarto de hotel onde, após uma luta de Cassius Clay (às vésperas de se converter ao islamismo e mudar o nome para Muhammad Ali), reúnem-se o boxeador, o líder político e religioso Malcolm X, o jogador de futebol americano Jim Brown, que estava estreando sua carreira de ator em Hollywood, e o cantor, compositor e empresário Sam Cooke (Leslie Odom Jr, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante). Como em A Voz Suprema do Blues, os quatro personagens travam diálogos crispados, pois cada um tem seu jeito de encarar o racismo — um dos duelos mais tensos é o de Malcolm X versus Sam Cooke: o primeiro, um notório orador, cobra do cantor que ele deveria ser a voz do movimento pelos direitos civis, e joga na cara do astro que as canções de Bob Dylan parecem refletir mais as angústias e os anseios dos afro-americanos.
Ambientado em 1964, Uma Noite em Miami se passa apenas uns poucos anos antes dos eventos narrados em Judas e o Messias Negro, dono de seis indicações no total. O filme de Shaka King é sobre a ascensão e a queda de Fred Hampton na mesma Chicago de A Voz Suprema do Blues, mas em 1968. (A propósito, o ativista aparece também em Os 7 de Chicago: na pele de Kelvin Harrison Jr, ele é visto conversando com Bobby Seale, um dos fundadores dos Panteras Negras, durante o julgamento reencenado pelo diretor e roteirista Aaron Sorkin.)
Com 21 anos, Hampton era o presidente da filial de Illinois do partido Panteras Negras. Não acreditava em reforma, "que só transforma escravos em escravos melhores". Pregava uma revolução cultural, política, econômica e, se fosse preciso, armada. Mas ele não queria a guerra.
— Não acreditamos que a melhor forma de combater o fogo seja com fogo. A melhor forma de combater o fogo é com água — diz o personagem. — Vamos combater o racismo não com racismo, mas com solidariedade. Não vamos combater o capitalismo com o capitalismo negro, mas com o socialismo.
Para levar adiante seu sonho, Fred Hampton também apostou em uma "Coalizão Arco-Íris", aproximando os Panteras de outras comunidades discriminadas, fossem latinas ou até mesmo brancas. Por esse papel, o britânico Daniel Kaluuya já ganhou o Globo de Ouro de coadjuvante e volta a concorrer ao Oscar — foi indicado a melhor ator por Corra! (2017). Terá entre os rivais um colega de elenco, Lakeith Stanfield.
Como o título indica, Judas e o Messias Negro retrata uma traição. Stanfield interpreta William O'Neal, um ladrão de carros que, coagido pelo FBI, infiltra-se nos Panteras Negras para se tornar um informante sobre as ações de Fred Hampton. Uma situação semelhante ocorre em Estados Unidos vs Billie Holiday (ainda inédito no Brasil), de Lee Daniels, que deu a Andra Day o Globo de Ouro e uma vaga no Oscar de melhor atriz. Agente da polícia federal, Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes) se aproxima da lendária cantora de jazz e de blues para prendê-la. A alegação é posse de drogas, mas no filme, que se concentra nas décadas de 1940 e 1950, Billie vira alvo da Casa Branca por conta de seu ativismo pelos direitos civis da população afro-americana — querem impedir que ela cante Strange Fruit (1939), cujos versos denunciam e condenam os linchamentos de negros que ocorriam no sul do país.
A profissão da protagonista, por sua vez, conecta Estados Unidos vs Billie Holiday de volta a A Voz Suprema do Blues, em que a música igualmente desempenha um papel importante no empoderamento. E Chadwick Boseman é o elo entre A Voz Suprema do Blues e Destacamento Blood, o filme de Spike Lee indicado na categoria de melhor trilha sonora original, composta por Terence Blanchard.
Em cartaz na Netflix, Destacamento Blood é sobre quatro negros veteranos da Guerra do Vietnã que, 50 anos depois, empreendem uma viagem de volta ao Sudeste Asiático. Estão à procura de um baú cheio de ouro e dos restos mortais do seu comandante, Stormin' Norman (vivido por Boseman), descrito como uma mistura de Malcolm X e Martin Luther King. Com a voz suave mas rascante do ator morto em agosto passado, de câncer, Norman é ele próprio um orador, o personagem com o qual o diretor valoriza o poder da palavra como agente conscientizador e transformador, primeiro de um indivíduo, depois de um grupo, e quem sabe da sociedade.
O filme de Spike Lee também se revela um ponto de convergência de vários personagens e temas apresentados nas demais obras. Ao longo da trama, o cineasta insere imagens históricas, discursos e entrevistas. Há Muhammad Ali justificando porque recusou servir na Guerra do Vietnã ("Vietnamitas não me chamam de crioulo, nunca me lincharam, nunca me perseguiram, nunca roubaram minha nacionalidade"). Há declarações de Malcolm X e Bobby Seale, entre outros líderes. Há a menção ao movimento Black Lives Matter e há a reprodução de um discurso de Martin Luther King feito exatamente um ano antes de seu assassinato, em 1968: "Reforçamos que a América nunca seria livre ou salva de si mesma até que os descendentes de escravos sejam completamente libertados dos grilhões que ainda usam. De certa forma, concordamos com (o poeta) Langston Hughes, o bardo do Harlem, que escreveu: 'Ah, sim, eu afirmo que a América nunca foi a América para mim. Mas eu juro: a América ainda será!'".
Principais indicados
Melhor filme: Bela Vingança, Judas e o Messias Negro, Mank, Meu Pai, Minari, Nomadland, O Som do Silêncio e Os 7 de Chicago
Melhor direção: Chloé Zhao (Nomadland), David Fincher (Mank), Emerald Fennell (Bela Vingança), Lee Isaac Chung (Minari) e Thomas Vinterberg (Mais uma Rodada)
Melhor atriz: Andra Day (Estados Unidos Vs Billie Holiday), Carey Mulligan (Bela Vingança), Frances McDormand (Nomadland), Vanessa Kirby (Pieces of a Woman) e Viola Davis (A Voz Suprema do Blues)
Melhor ator: Anthony Hopkins (Meu Pai), Chadwick Boseman (A Voz Suprema do Blues), Gary Oldman (Mank), Riz Ahmed (O Som do Silêncio) e Steven Yeun (Minari)
Atriz coadjuvante: Amanda Seyfried (Mank), Glenn Close (Era uma Vez um Sonho), Maria Bakalova (Borat: Fita de Cinema Seguinte), Olivia Colman (Meu Pai) e Yuh-Jung Youn (Minari)
Ator coadjuvante: Daniel Kaluuya (Judas e o Messias Negro), Lakeith Stanfield (Judas e o Messias Negro), Leslie Odom Jr. (Uma Noite em Miami), Paul Raci (O Som do Silêncio) e Sacha Baron Cohen (Os 7 de Chicago)
Roteiro original: Bela Vingança, Judas e o Messias Negro, Minari, Os 7 de Chicago e O Som do Silêncio
Roteiro adaptado: Borat: Fita de Cinema Seguinte, Meu Pai, Nomadland, Uma Noite em Miami e O Tigre Branco
Fotografia: Judas e o Messias Negro, Mank, Nomadland, Relatos do Mundo e Os 7 de Chicago
Edição: Bela Vingança, Meu Pai, Nomadland, Os 7 de Chicago e O Som do Silêncio
Direção de arte: Mank, Meu Pai, Relatos do Mundo, Tenet e A Voz Suprema do Blues
Figurino: Emma, Mank, Mulan, Pinóquio e A Voz Suprema do Blues
Maquiagem e cabelos: Emma, Era uma Vez um Sonho, Mank, Pinóquio e A Voz Suprema do Blues
Efeitos visuais: O Céu da Meia-Noite, O Grande Ivan, Love and Monsters, Mulan e Tenet
Som: Greyhound, Mank, Relatos do Mundo, O Som do Silêncio e Soul
Trilha sonora: Destacamento Blood, Mank, Minari, Relatos do Mundo e Soul
Canção original: Fight for You (Judas e o Messias Negro), Hear My Voice (Os 7 de Chicago), Húsavík (Festival Eurovision da Canção), Io Si (Seen) (Rosa e Momo) e Speak Now (Uma Noite em Miami)
Longa de animação: A Caminho da Lua, Dois Irmãos, Shaun, o Carneiro: A Fazenda Contra-Ataca, Soul e Wolfwalkers
Documentário: Agente Duplo, Collective, Crip Camp: Revolução pela Inclusão, Professor Polvo e Time
Filme internacional: Mais uma Rodada (Dinamarca), Better Days (Hong Kong), Collective (Romênia), O Homem que Vendeu sua Pele (Tunísia) e Quo Vadis, Aida? (Bósnia-Herzegovina)