O Oscar fez história nesta segunda-feira (15). Pela primeira vez em — pasme — 93 edições da premiação concedida pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, duas mulheres vão concorrer na categoria de melhor direção: a chinesa Chloé Zhao (de Nomadland) e a britânica Emerald Fennell (Bela Vingança). Ambos os filmes também disputam a principal estatueta dourada, e ambos ainda não foram lançados comercialmente no Brasil.
É um recorde que expõe um dado vergonhoso: até 2020, apenas cinco diretoras já haviam sido indicadas à estatueta dourada.
A pioneira foi a italiana Lina Wertmüller, hoje com 92 anos. Concorreu em 1977, por Pasqualino Sete Belezas (1975), filme sobre um desertor da Segunda Guerra Mundial que é capturado por soldados alemães e enviado a um campo de concentração, onde rememora sua vida em uma família com sete irmãs. A comédia dramática também disputou as categorias de melhor filme internacional, ator (Giancarlo Giannini) e roteiro original (da própria Lina).
Passaram-se 17 anos até que a neozelandesa Jane Campion concorresse por O Piano (1993), drama ambientado na metade do século 19 sobre uma escocesa muda que viaja com sua filha a uma parte remota da Nova Zelândia para cumprir seu casamento arranjado. O Piano ganhou os Oscar de melhor atriz (Holly Hunter), atriz coadjuvante (Anna Paquin, então com 11 anos) e roteiro original (Jane Campion) e foi indicado também a melhor filme, fotografia, edição e figurinos.
Em 2004, a norte-americana Sofia Coppola foi indicada por Encontros e Desencontros, a perdida tradução de Lost in Translation. Ela tinha 33 anos — é a mais jovem na lista — e ganhou o Oscar de roteiro original. A relação entre um ator de cinema (Bill Murray) que está em Tóquio para gravar um comercial de uísque e a esposa solitária (Scarlett Johansson) de um fotógrafo de celebridades também brigou pelos troféus de melhor filme e ator.
A única diretora oscarizada é a norte-americana Kathryn Bigelow, com Guerra ao Terror (2008), sobre o perigoso cotidiano de um esquadrão antibombas do exército dos Estados Unidos durante o mais recente conflito no Iraque (no elenco, estavam dois futuros super-heróis da Marvel: Jeremy Renner, o Gavião Arqueiro, e Anthony Mackie, o Falcão). Foi uma vitória dupla: também levou o Oscar de melhor filme, além dos prêmios de roteiro original, edição, edição de som e mixagem de som. O curioso é que Kathryn derrotou seu ex-marido, James Cameron, que era favorito, nas duas categorias, por Avatar. Em 2013, seu longa A Hora Mais Escura, sobre a caçada ao terrorista Osama Bin Laden, foi indicado ao Oscar de melhor filme, mas não ao de direção.
O quinteto pré-2021 se completou em 2018, quando Greta Gerwig competiu por Lady Bird: A Hora de Voar, filme sobre a passagem da adolescência para a juventude de uma garota de Sacramento, na Califórnia, cidade natal da própria diretora. A comédia dramática concorreu a outros quatro prêmios, incluindo melhor filme, atriz (Saoirse Ronan) e roteiro original, escrito pela cineasta. No ano passado, seu Adoráveis Mulheres disputou seis troféus, incluindo o de melhor filme, mas Greta repetiu a sina de nove diretoras cujas obras competiram pela principal estatueta, mas não tiveram seus nomes indicados ao prêmio de sua categoria. Entre elas, além de Kathryn Bigelow com A Hora Mais Escura, estão Randa Haines (Filhos do Silêncio, de 1986), Penny Marshall (Tempo de Despertar, 1990), Lone Scherfig (Educação, 2009), Lisa Cholodenko (Minhas Mães e Meu Pai,2010) e Ava DuVernay (Selma: Uma Luta pela Igualdade, 2014).
A ausência de Greta na lista do Oscar de melhor direção contribuiu para — com o perdão do trocadilho — a grita contra a Academia de Hollywood, que também desprezou o trabalho da diretora Lulu Wang, de A Despedida, vencedor do troféu do público no Festival de Sundance e concorrente ao Globo de Ouro e ao Bafta de longa internacional.
Não é um embaraço exclusivo do Oscar. No Globo de Ouro, concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood, a estatística pode ser mais alta, mas ainda assim continua minguada: em 78 edições, oito diretoras receberam um total de 10 indicações (Barbra Streisand e Kathryn Bigelow concorreram duas vezes) e houve duas conquistas — Barbra com Yentl, em 1984, e Chloé Zhao com Nomadland, em 2021. O Festival de Cannes, realizado na França das cineastas Agnès Varda, Claire Denis e Celine Sciamma, concedeu a Palma de Ouro apenas uma vez para um filme dirigido por mulher (O Piano, de Jane Campion) e somente duas vezes o prêmio de melhor direção (Yulia Solntseva, em 1961, por A Epopeia dos Anos de Fogo, e Sofia Coppola, em 2017, por O Estranho que Nós Amamos).
Na verdade, a pequena representatividade em premiações é reflexo de um problema sistêmico. Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia com 1,1 mil filmes norte-americanos produzidos entre 2007 e 2016 constatou que, dos 1.223 diretores envolvidos, apenas 4% eram mulheres. O levantamento também mostrou que a maioria delas, 84%, trabalhou em apenas um filme — entre os homens, essa taxa é de 55%. "Se você está tentando ter uma família ou trilhar um caminho em Hollywood, ter uma oportunidade a cada década não vai adiantar", escreveu uma das autoras da pesquisa, Katherine Pieper.
Na outra ponta do negócio, porém, a população feminina é maioria: 52% dos frequentadores de cinema nos Estados Unidos são mulheres.
Para mudar a cara do jogo, para aumentar a representatividade na hora de escolher indicados e vendedores, a Academia vem convidando mais mulheres. Em 2019, por exemplo, elas foram 50% dos 842 novos associados. Em 2020, 45% dos 819 integrantes adicionados (incluindo a própria Lulu Wang). Assim, a participação feminina, que era de 25% em 2015, pulou para 33%.
É possível que as indicações de 2021 já sejam consequência dessa mudança, mas é preciso dizer que as duas concorrentes fizeram por merecer.
Chinesa de nascença (é a primeiroa mulher não branca indicada na categoria), Chloé Zhao, 38 anos, surge como favorita. Aliás, Nomadland desponta como um dos principais candidatos ao Oscar de melhor filme. Já tem no currículo o Leão de Ouro no Festival de Veneza, o Gotham Awards (para produções com orçamento de até US$ 35 milhões), o Globo de Ouro na categoria drama e o Critics' Choice. Também está concorrendo ao troféu da Associação dos Produtores (cujo vencedor, vale lembrar, coincidiu com o Oscar em 21 das últimas 31 edições) e ao Bafta.
Realizadora do vindouro filme da Marvel Os Eternos (a estreia está prevista para novembro), Chloé já foi premiada com o Globo de Ouro e com o Critics' Choice de melhor direção. Em Nomadland, narra com sensibilidade e sobriedade o cotidiano de uma viúva (interpretada por Frances McDormand, indicada ao Oscar de melhor atriz) que, após o colapso econômico de uma cidade industrial nos Estados Unidos, precisa morar dentro de uma van. Chloé também é a primeira mulher a receber quatro indicações no mesmo ano, por melhor filme, direção, roteiro adaptado e edição.
A atriz britânica Emerald Fennell, 35 anos, estreia na direção de longas com o fulgurante Bela Vingança. É o filme que melhor ilustra esse momento de empoderamento feminino no Oscar. Conta a história de uma mulher (encarnada por Carey Mulligan, concorrente na categoria de melhor atriz) que empreende um acerto de contas com o machismo estrutural e a cultura do estupro. Com uma roupagem colorida e pop, que inclui uma surpreendente versão de Toxic (Britney Spears), consegue ser, ao mesmo tempo, sarcasticamente fantasioso e cruelmente realista.
Principais indicados
Melhor filme: Bela Vingança, Judas e o Messias Negro, Mank, Meu Pai, Minari, Nomadland, O Som do Silêncio e Os 7 de Chicago
Melhor direção: Chloé Zhao (Nomadland), David Fincher (Mank), Emerald Fennell (Bela Vingança), Lee Isaac Chung (Minari) e Thomas Vinterberg (Mais uma Rodada)
Melhor atriz: Andra Day (Estados Unidos Vs Billie Holiday), Carey Mulligan (Bela Vingança), Frances McDormand (Nomadland), Vanessa Kirby (Pieces of a Woman) e Viola Davis (A Voz Suprema do Blues)
Melhor ator: Anthony Hopkins (Meu Pai), Chadwick Boseman (A Voz Suprema do Blues), Gary Oldman (Mank), Riz Ahmed (O Som do Silêncio) e Steven Yeun (Minari)
Atriz coadjuvante: Amanda Seyfried (Mank), Glenn Close (Era uma Vez um Sonho), Maria Bakalova (Borat: Fita de Cinema Seguinte), Olivia Colman (Meu Pai) e Yuh-Jung Youn (Minari)
Ator coadjuvante: Daniel Kaluuya (Judas e o Messias Negro), Lakeith Stanfield (Judas e o Messias Negro), Leslie Odom Jr. (Uma Noite em Miami), Paul Raci (O Som do Silêncio) e Sacha Baron Cohen (Os 7 de Chicago)
Roteiro original: Bela Vingança, Judas e o Messias Negro, Minari, Os 7 de Chicago e O Som do Silêncio
Roteiro adaptado: Borat: Fita de Cinema Seguinte, Meu Pai, Nomadland, Uma Noite em Miami e O Tigre Branco
Fotografia: Judas e o Messias Negro, Mank, Nomadland, Relatos do Mundo e Os 7 de Chicago
Edição: Bela Vingança, Meu Pai, Nomadland, Os 7 de Chicago e O Som do Silêncio
Direção de arte: Mank, Meu Pai, Relatos do Mundo, Tenet e A Voz Suprema do Blues
Figurino: Emma, Mank, Mulan, Pinóquio e A Voz Suprema do Blues
Maquiagem e cabelos: Emma, Era uma Vez um Sonho, Mank, Pinóquio e A Voz Suprema do Blues
Efeitos visuais: O Céu da Meia-Noite, O Grande Ivan, Love and Monsters, Mulan e Tenet
Som: Greyhound, Mank, Relatos do Mundo, O Som do Silêncio e Soul
Trilha sonora: Destacamento Blood, Mank, Minari, Relatos do Mundo e Soul
Canção original: Fight for You (Judas e o Messias Negro), Hear My Voice (Os 7 de Chicago), Húsavík (Festival Eurovision da Canção), Io Si (Seen) (Rosa e Momo) e Speak Now (Uma Noite em Miami)
Longa de animação: A Caminho da Lua, Dois Irmãos, Shaun, o Carneiro: A Fazenda Contra-Ataca, Soul e Wolfwalkers
Documentário: Agente Duplo, Collective, Crip Camp: Revolução pela Inclusão, Professor Polvo e Time
Filme internacional: Mais uma Rodada (Dinamarca), Better Days (Hong Kong), Collective (Romênia), O Homem que Vendeu sua Pele (Tunísia) e Quo Vadis, Aida? (Bósnia-Herzegovina)